Há toda uma lição de cinema na comparação da maneira pela qual três (dentre os cinco) finalistas ao Oscar de documentário de longa-metragem revisitam os mesmos episódios dramáticos da história dos negros nos EUA. Já é possível confrontá-los com a estreia ontem em salas de “Eu Não Sou Seu Negro”, de Raoul Peck, estando disponíveis há algum tempo “A 13a Emenda”, de Ava DuVernay (Netflix), e a série “O.J.: Made in America”, de Ezra Edelman (Watch ESPN).
As três produções apresentam uma narrativa histórica similar ao recuperar a exploração e repressão aos afro-americanos. Lembram por exemplo a mesma cadeia de levantes antidiscriminatórios, de Birmingham (Alabama, 1963) e Watts (Califórnia, 1965) a Los Angeles (Califórnia, 1992) e à era Obama (2009-2017). Cenas de arquivo fotográfico e televisivo muitas vezes se repetem no trio, cada qual usando-as em favor de seu próprio arco dramático não-ficcional.
Em “A 13a Emenda”, premiado com o BAFTA (o "Oscar" britânico) nesta semana, a sequência de distúrbios surge logo após o prólogo introdutório, dentro do levantamento cronológico que vincula a escravidão nos EUA ao massivo encarceramento contemporâneo de afro-americanos. Edelman, por sua vez, a reserva para um momento algo posterior da estrutura de sua série.
Primeiro, ele resume o começo glorioso da ascensão no futebol americano universitário de O.J., no final dos anos 1960, e sua transição, já nos 70, para um tipo de celebridade “incolor”. Só então “Made in America” incorpora a memória dos protestos, apropriada pelos advogados para a “afro-americanização” de O.J. em sua linha de defesa no julgamento por duplo assassinato em 1994 e 1995.
A estratégia é ainda outra em “Eu Não Sou Seu Negro”. O documentário de Peck é um ensaio audiovisual sobre as reflexões do escritor negro James Baldwin (1924-1987) em torno da questão racial nos EUA. Um manuscrito inacabado de Baldwin, “Remember This House” (Lembre Esta Casa), serve como espinha dorsal para o roteiro.
Nas notas de pouco mais de 30 páginas para o ensaio, redigidas com a sofisticação literária e o brilho analítico tradicionais de Baldwin, o escritor se propõe a recordar sua amizade com três ativistas negros pelos direitos humanos assassinados nos anos 1960: Medgar Evers (1925-1963), Malcolm X (1925-1965) e o reverendo Martin Luther King Jr (1929-1968).
Endereçando-se diretamente aos filhos deles, Baldwin escreve que sua abordagem teria necessariamente de ser como “testemunha da vida e morte de seus pais famosos”. “Eu Não Sou Seu Negro” espaça pelo filme as lembranças de cada tragédia, seguindo-lhes a sequência cronológica (Evers, X, King) e cimentando-as a partir de intervenções do escritor em textos e filmagens da época.
Nesta estrutura algo mais difusa, irrompem aos poucos os registros daqueles distúrbios, respeitando não a linearidade histórica mas sim as demandas argumentativas. É assim, por exemplo, que protestos mais recentes antecedem cenas do linchamento policial de Rodney King que detonou os protestos de 1992.
As mesmas imagens servem distintamente a estilos cinematográficos diferentes. “A 13a Emenda” é o tradicional documentário militante, alternando-se entre entrevistas, arquivos e novos registros. “O.J.: Made in America” é uma série biográfica não-ficcional, de quase oito horas em cinco partes, ancorada em depoimentos de amigos de O.J. e personagens do processo criminal e numa impressionante pesquisa de arquivos, públicos e pessoais.
Raoul Peck, por seu turno, optou por celebrar o legado de James Baldwin por meio de um ensaio fílmico construído a partir das próprias palavras do autor. Como se trata de uma homenagem sob a forma de cinema, uma das artimanhas de que lança mão o diretor haitiano é o diálogo recorrente com o imaginário cinematográfico de Baldwin, discutido por ele mesmo num ensaio de 1976, “The Devil Finds Work” (O Diabo Encontra Trabalho).
Dois mitos hollywoodianos destacam-se nesta operação crítica de Peck. O primeiro é John Wayne (1907-1979). É fascinante o processo de ressignificação para Baldwin por que passa o ator de “No Tempo das Diligências” (1939), de ídolo das matinês infantis à símbolo da insensibilidade branca.
O segundo, e muito mais importante, é Sidney Poitier, que se torna nonagenário na próxima segunda-feira. Aprofundando uma vereda aberta pelo próprio ensaio de Baldwin, Raoul Peck torna Poitier uma espécie de quinto protagonista do filme, ao lado do escritor e de seus três amigos assassinados.
Ei-lo simbolizando o apaziguamento em “Acorrentados” (1958) ou cedendo à caricatura liberal em “Adivinhe Quem Vem Para Jantar” (1967), mas também, numa reportagem de TV, ao lado de Baldwin, Marlon Brando e Harry Belafonte, fazendo eco à pregação anti-segregacionista de Martin Luther King Jr. na Marcha em Washington de 1963.
Em relação a James Baldwin, “Eu Não Sou Seu Negro” será por muito tempo o mais belo tributo em filme. Mas é impossível assisti-lo, no quadro da efeméride da próxima semana, sem refletir sobre o posto elegante e corajosamente conquistado por Sidney Poitier no topo do panteão afro-americano.