Por Amir Labaki
Ferreira Gullar está morto. Como milhares de pessoas, recebi a notícia minutos depois de ter terminado o ritual dominical da leitura de sua crônica semanal na "Folha". Era um texto esperançoso, mais existencial do que propriamente político, um ponto final não preto mas azul como o céu daquela manhã de sua despedida ao Rio.
Acompanhando a vaga de tristeza, dois pensamentos me atropelaram. O primeiro foi como Ferreira Gullar (1930-2016), poeta antes de tudo, num país que pouco lê (quanto mais poesia), marcou a sensibilidade de três gerações de brasileiros, mesmo que estes não o soubessem, devido à multiplicidade de seu talento. O segundo, claro, o vinculava a momentos essenciais do cinema brasileiro.
Como poeta, sintetizou Antonio Candido, Gullar “passou pelo concretismo e amadureceu lentamente, realizando uma obra vigorosa, que vai da emoção manifesta sem complacência lírica a uma espécie de realismo poético cheio de ressonâncias sociais”. Participou também do neoconcretismo nas artes plásticas, do teatro do CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE e do Grupo Opinião, do Cinema Novo e de novelas e seriados da Rede Globo.
No jornalismo, além da mais de uma década na “Folha”, marcou época sobretudo nos anos 1950 como cronista da primeira fase do Suplemento Dominical do “Jornal do Brasil”. Discípulo do crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981), manteve intensa produção ensaística sobre artes plásticas, enquanto produzia também obra própria em pintura, gravura e escultura.
Na multidão Gullar, não poderia passar incólume nosso cinema. Ele não realizou filmes mas o marcou atrás e à frente das câmeras.
Nas telas Ferreira Gullar é sobretudo uma voz. Como narrador, ele colaborou com marcantes documentários de mestres do Cinema Novo, no auge e mesmo após o movimento. A aspereza sonora de seu timbre, temperado pela experiência como radialista na juventude em sua São Luis natal, rimava com a aridez das imagens.
Apenas para o colega de CPC Leon Hirszman (1938-1987), fez a locução de “Maioria Absoluta” (1964), da trilogia “Cantos do Trabalho”(1976), do primeiro e do terceiro episódios (ao lado de Vanda Lacerda) de “Imagens do Inconsciente” (1986) e do póstumo “ABC da Greve” (1979/1990). Para Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), emprestou a voz em “Brasília, Contradições de uma Cidade Nova” (1967) e “O Aleijadinho” (1978). Eduardo Escorel divide com ele a narração de seu “Chico Antônio, Um Herói com Caráter” (1983).
Mas é com nada menos que “Cabra Marcado para Morrer” (1964/1984), de Eduardo Coutinho (1933-2014), não por coincidência montado por Escorel, que se deu a mais crucial colaboração cinematográfica de Gullar. Sua participação como um dos narradores do filme, ao lado do próprio Coutinho e de Tite de Lemos, fecha um círculo iniciado na concepção mesma do projeto original.
Rompendo com sua poesia radical do final dos anos 1950, Gullar abraçou a poesia militante no começo de 1960, quando se engajou no CPC à convite do dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho (1936-1974). Incentivado por Vianinha, escreveu então seu primeiro poema de cordel engajado, “João Boa-Morte, Cabra Marcado Pra Morrer” (1962), sobre o assassinato do líder camponês João Pedro Teixeira (1918-1962).
Vianinha não escreveu a peça sobre o mesmo assunto combinada com Gullar, mas Coutinho, então um jovem cineasta militante no CPC, arregaçou as mangas para desenvolvê-lo num filme de ficção, o segundo projeto cinematográfico do centro na sequência do longa de episódios “Cinco Vezes Favela” (1963).
Com a “aquiescência” de Gullar, o filme emprestaria o entrecho e parte do título do cordel, sendo batizado “Cabra Marcado Para Morrer”. A eclosão do golpe militar de 1964 interrompeu as filmagens e apenas no começo dos anos 1980 Coutinho retrabalharia o material bruto preservado para dar origem, nas palavras de Gullar, a um “filme sobre o filme que não pôde ser feito” – e sobre o impacto devastador da repressão política sobre o destino de Elizabeth Teixeira, viúva de João Pedro, e de seus filhos. O resto é história.
Neste dilacerante 2016, Ferreira Gullar imantou o documentário de Walter Carvalho sobre o poeta Armando de Freitas Filho ao discutir poesia com o retratado em “Manter a Linha da Cordilheira Sem o Desmaio da Planície", lançado na competição do É Tudo Verdade. Sua estreia comercial, no próximo ano, fortalecerá a celebração fílmica gullariana em andamento em dois projetos.
Diretor dos dois principais retratos gravados do amigo,
“O Canto e A Fúria – Ferreira Gullar” (1994) e “Ferreira Gullar – A Necessidade da Arte” (2005), Zelito Viana já tem rodado um documentário sobre ele em longa-metragem. Haveria ainda uma versão em longa-metragem da telessérie “Há Muitas Noites na Noite” (TV Brasil, 2015) realizada por Sílvio Tendler a partir da obra-prima do poeta, “Poema Sujo” (Companhia das Letras, 2016), seu uivo memorialista escrito em 1975 durante o exílio.
Tomara as homenagens em cinema ajudem a aplicar para o próprio Ferreira Gullar seus versos em “Rainer Maria Rilke e A Morte”: "Resta-nos buscá-lo nos poemas, onde nossa leitura de algum modo acenderá outra vez sua voz".