Por Amir Labaki, de Amsterdã
A batalha contra as forças bárbaras do Estado Islâmico (EI) destaca-se ao centro das premiações da 29a edição do Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA), encerrado no último domingo. “Nowhere to Hide” (Nenhum Esconderijo), do cineasta curdo-norueguês Zaradasht Ahmed, venceu a competição internacional de longas-metragens, que contou com a montadora brasileira Jordana Berg no júri. Já “Rádio Kobani”, de Reber Dosky, levou o prêmio da disputa de produções holandesas.
Ambos apostam em estendidas imersões nas comunidades locais para transcender o imediatismo dos registros jornalísticos. “Rádio Kobani” acompanha por três anos o destino do vilarejo próximo a Alepo na fronteira da Síria com a Turquia. Cerca de um ano a mais de conflito em Jawlala, no nordeste do Iraque, vem a luz em “Nowhere to Hide”.
Reber Dosky amplia em seu novo filme a experiência de acompanhamento de um personagem já presente em seu curta-metragem “O Atirador de Elite de Kobani” (2015), que recebeu uma menção honrosa no É Tudo Verdade deste ano. Primeiro foi um “sniper”, agora é uma jovem repórter curda, Dilovan, que inicia uma rádio para reconstituir o sentido comunitário numa cidade traumatizada pela breve mas nem por isso menos selvagem ocupação pelo Estado Islâmico.
Iraquiano de nascimento, Zaradasht também elege um protagonista como nosso guia no coração das trevas, mas o faz explorando um dispositivo distinto. “Nowhere to Hide” é todo rodado por um enfermeiro, Nori Sharif, treinado rapidamente pelo cineasta para operar autonomamente a câmera.
A experiência remete diretamente à câmera emprestada por Marcos Prado para que Marco Archer registrasse seu cotidiano no corredor da morte da Indonésia em “Curumim” (2016). É algo similar também à parceria entre o cineasta israelense Guy Davidi e o cinegrafista amador palestino Emad Burnat para o registro da violência contra a população da Cisjordânia em “Cinco Câmeras Quebradas” (2012).
Se “Rádio Kobani” enfoca mais a reconstrução, “Nowhere to Hide” radiografa a descida ao inferno de Jawlala. Inicialmente a partir de seu cotidiano no hospital e na casa de enfermos, Nori retrata o vácuo de segurança estabelecido a partir da retirada das tropas americanas da cidade em 2011.
Sua pequena câmera registra tanto sua vida em família, com a mulher e duas filhas, quanto a escalada do horror. Primeiro, os atentados-suicidas. Em seguida, os carros-bombas. Por fim, prenunciando a invasão pelo Estado Islâmico, já em 2012 multiplicam-se os corpos com cabeças cortadas.
Jalawla torna-se então campo aberto de batalha entre a milícia Peshmerga curda e os jihadistas do EI. Em agosto de 2014, a bandeira negra do Estado Islâmico simboliza a tomada da cidade.
Numa sequência de tirar o fôlego, Nori foge com a família, orientando do volante do carro a filha que opera a câmera para ocultar o aparelho. Inicia-se assim a peregrinação por locais provisórios de refúgio até finalmente se estabelecerem, ao lado de quinhentas outras famílias, no campo de refugiados próximo a Baquba.
O caráter intimista do registro nos permite contrastar as cenas iniciais de paz doméstica com a nova vida improvisada da família Sharif. Quase um ano e meio se passa até a reconquista de Jalawla, que Nori reencontra deserta e escombros ao visitar com sua câmera as ruínas do hospital em que trabalhava.
O temor de nova queda, porém, desaconselha qualquer plano de retorno. Jalawla ainda não é Kobani.
“Nowhere to Hide” é um poderoso estudo de caso do impacto destruidor sobre as vidas comuns do tsumani de terror desencadeado pela ascensão do Estado Islâmico. É história à quente, gravada para a eternidade.
O filme abre ainda uma atualíssima questão sobre a autoria no documentário. Ao contrário de “Cinco Câmeras Quebradas”, coassinado por Davidi e Burnat, “Nowhere to Hide” apresenta-se sob a assinatura única de Zaradasht Ahmed, seu catalisador e organizador, sob o crédito de diretor e roteirista (Eva Hillstöm assina a edição). Não mereceria Nori Sharif mais do que o crédito de cinegrafista, ainda assim dividido com Zaradasht? Afinal, é dele não apenas o drama mas também o olhar.