Por Amir Labaki
Estreando no Brasil neste fim de semana dentro da 40a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, “Cameraperson” de Kirsten Johnson é um dos mais interessantes documentários reflexivos desde “Santiago” (2007), de João Moreira Salles. A partir de um quarto de século de experiência como diretora de fotografia e operadora de câmera em filmes rodados mundo afora, o mais célebre dos quais o oscarizado “Citizenfour” (2014) de Laura Poitras, Johnson mistura ensaio e autobiografia num mosaico de sequências por ela captadas.
Logo no início, Johnson expõe seu programa: “Originalmente filmei o material que se segue para outros filmes, mas aqui eu peço a vocês que o veja como minha memória. Essas foram as imagens que me marcaram e que ainda me deixam refletindo”.
As cenas foram rodadas para mais de 25 produções documentais. Metade delas tem por cenário os EUA, como as de “Fahrenheit 11 de Setembro” (2004) de Michael Moore, “Derrida” (2002) de Amy Ziering e Kirby Dick e “Trapped” (2016) de Dawn Porter. A outra metade foi gravada em zonas de conflito e de emergência humanitária em outros países, como Ruanda (Ladies First, 2004), Libéria (Pray the Devil Back to Hell, 2008), Bósnia e Herzegovina (I Came to Testify, 2011) e Myanmar (This Very Life, 2016).
Há uma exceção. A edição faz dialogar com este material, digamos, público uma série de registros privados feitos por Johnson em família, sobretudo com sua mãe vitimada por Alzheimer e com suas próprias crianças. Nada mais coerente, pois a maioria das sequências selecionadas do material bruto são de momentos de gravação excluídos dos documentários editados e, sobretudo, são marcadas pela presença, quase sempre apenas fora de quadro, da própria Johnson.
“Cameraperson” é editado temática e não cronologicamente. Se no clássico silencioso “O Homem com a Câmera de Filmar” (1929), de Dziga Vertov, a questão central era a da nova capacidade de visualizar o mundo propiciada pelo aparato cinematográfico, aqui os principais questionamentos dizem respeito aos desafios éticos apresentados pelas situações de campo nos instantes de registro pelo(a) cinegrafista.
Johnson vai adensando sua reflexão bloco após bloco dramático. Os assuntos recorrentes tratam de microcosmos de bárbarie, como o estupro em massa de mulheres bósnias durante o conflito nos Bálcãs nos anos 1990, de pontos cegos da miséria, como uma sala de parto totalmente desaparelhada no interior da Nigéria, e da crônica histórica do terror, eloquentemente demonstrada por uma sequência de imagens de cenários de massacres como o de índios americanos em Wounded Knee, Dakota do Sul, em 1890, o World Trade Center, na Nova York de 2001, e a praça Tahir no Cairo, Egito, em 2011.
Perpassando todos estes temas, o vetor da autoindagação de quem opera a câmera. Os questionamentos são múltiplos. Distanciamento ou cumplicidade? Filmar ou agir? Até que ponto vale o risco por um registro? O que dita os limites do que deve ser mostrado?
Por vezes, as falas dos personagens articulam diretamente questões comuns a Johnson. Uma intérprete de suas filmagens na Bósnia reclama do alto preço pessoal da exposição reiterada às vítimas do horror. A isso logo se contrapõe uma espécie de vício pela “intensidade do momento”, como reflete um ex-militante antigovernamental de “1971” (2014, no Netflix), de Johanna Hamilton.
Há ainda momentos em que o próprio ato de filmar traduz as inquietações. Johnson registra num longo plano-sequência o nascimento de um bebê com dificuldades respiratórias em Kano, na Nigéria. Deve a câmera acompanhar a parteira em busca de algum aparelho salvador? Ficar no bebê semi-agônico? Ser desligada para voluntariar algum tipo de auxílio?
O amplo mosaico de situações coberto por “Cameraperson” torna algo frustrante qualquer tentativa de sintetizar a experiência por escrito. Kirsten Johnson desenvolveu em cinema muitas das reflexões levantadas por Susan Sontag, a partir da fotografia, em “Diante da Dor dos Outros” (Companhia das Letras, 112 págs, R$ 26).
Como Sontag, ela investiga a “iconografia do sofrimento”, mas o faz existencialmente, falando de dentro do próprio processo. Faz dela a conclusão de ensaísta: “Parece constituir um bem em si mesmo reconhecer, ampliar a consciência de quanto sofrimento causado pela crueldade existe no mundo que partilhamos com os outros”.
“Deixemos que as imagens atrozes nos persigam”, escreve Sontag. Em “Cameraperson”, Kirsten Johnson tem a coragem de enfrentá-las como memória direta.