Por Amir Labaki
Há dois anos, “Selma: Uma Luta Pela Igualdade” (2014) de Ava DuVernay, sobre a marcha por direitos humanos liderada em 1965 por Martin Luther King no Alabama, foi quase totalmente esnobado pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood. Recebeu apenas duas indicações ao Oscar, de melhor filme e canção, vencendo nesta última categoria. A hora da revanche de DuVernay parece ter chegado com “A 13a Emenda”, o primeiro documentário a abrir o Festival de Cinema de Nova York, no mês passado, e já disponível no Brasil pela Netflix.
O título simboliza a amplitude da revisão histórica, de um século e meio de repressão aos afro-americanos, compactamente proposta pelos 100 minutos de filme. A 13a emenda à Constituição dos EUA, que pôs fim à escravidão no país em 1865, foi tradicionalmente sempre tratada como marco humanista. O texto diz: “Nem escravidão nem servidão involuntária, exceto como uma punição por um crime pelo qual a parte for plenamente condenada, deve existir dentro dos EUA”. Relendo-a ao pé da letra, DuVernay sustenta que a própria exceção expressamente prevista tem servido de instrumento constitucional para uma nova forma de escravidão por meio do encarceiramento em massa dos negros.
A partir de entrevistas com acadêmicos, políticos e militantes, notadamente Angela Davis, Cory Booker, Henry Louis Gates Jr., Michelle Alexander e Van Jones, “A 13a Emenda” argumenta que a opressão aos afro-americanos tem sido mantida por uma sucessão de mecanismos sociais que seguem em linha direta da escravidão à atual prisão em massa, passando pelo “aluguel” como mão de obra, para a reconstrução sulista, de negros criminalmente condenados logo após o fim da Guerra Civil Americana (1861-1865) e pela legislação segregacionista em vigor até o Ato de Direitos Civis assinado em 1965 pelo presidente Lyndon B. Johnson.
DuVernay estabelece o clássico silencioso “O Nascimento de Uma Nação” (1915), de D. W. Griffith, como um do marcos mitologizantes dos estereótipos negativos em relação aos negros. Saudado na exibição na Casa Branca pelo presidente Woodrow Wilson como “história em relâmpagos”, o filme contrapõe a saga de duas famílias em lados opostos da Guerra Civil, retratando heroicamente os cruzados racistas da Ku Klux Klan e os negros (interpretados por atores brancos com as caras pintadas) invariavelmente como vilões, idiotas e estupradores de garotas brancas.
“A 13a Emenda” detalha como o estereótipo demonizante do afro-americano como “criminoso” estendeu-se pelo século 20, adentrando o século 21. “Temos hoje mais homens negros sob supervisão carcerária do que todos os escravos negros somados”, frisa o senador democrata Cory Booker.
Não faltam números à argumentação. OS EUA têm 5% da população planetária, e 25% da população carcerária mundial, alerta na abertura do filme o presidente Barack Obama. Os afro-americanos representam 6,5% da população do país e 40% dos mais de 2,3 milhões que formam atualmente a população carcerária dos EUA.
Eram 357.292 em 1970, 513.900 em 1980 e 1.179.200 em 1990. DuVernay disseca as várias políticas governamentais que catalisaram o encarceiramento, tendo por alvo preferencial indeclarado a população negra. Van Jones assevera que a eliminação, por morte, prisão ou exílio, de lideranças afro-americanas, vinculadas aos movimentos pelos direitos humanos no final dos anos 1960 e começo dos 1970, como Martin Luther King (1929-1968), Malcolm X (1925-1965) e Fred Hampton (1948-1969), preparou o terreno.
Primeiro veio Richard Nixon, presidente entre 1969 e 1974, seu discurso de “lei e ordem” e o anúncio da “guerra às drogas”. No cargo entre 1981 e 1989, “Ronald Reagan transformou a retórica em fato”, sustenta a advogada e ensaísta Michelle Alexander. Na gestão dele, por exemplo, a pena por consumo de crack passou a superar largamente àquela por consumo de cocaína.
Mesmo hoje arrependido, Bill Clinton quando presidente (1993-2001) turbinou o processo, com um investimento maciço na militarização policial e em novas prisões (mais e mais privatizadas) e com legislações draconianas que catapultaram ainda mais o número de prisões, em especial de afro-americanos. Estabeleceu-se um “complexo industrial presidiário”, em que presos garantem lucros privados tanto pelas exigências de manutenção do próprio sistema carcerário quanto ao fornecer mão de obra para grandes corporações.
A violência policial contra negros, que explodiu no segundo mandato de Obama, espelharia nas ruas o enraizamento desse desvalor da vida afro-americana. A resposta surge em 2013 com o movimento “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam). Entre outras coisas, “A 13a Emenda” é seu poderoso filme-manifesto.