Por Amir Labaki
Em 2002, testemunhei o impacto hipnótico da primeira projeção no Festival de Berlim do documentário “Eu Fui A Secretária de Hitler”, de André Heller e Othmar Schmiderer, no qual depunha para a câmera e para a posteridade Traudl Junge (1920-2012), a última das jovens auxiliares que serviram ao Führer até o suicídio em seu “bunker” berlinense. Dois dias depois, senti um calafrio ao saber que Junge falecera de câncer na véspera, exatamente um dia após aquela perturbadora sessão de estreia.
Dois anos mais tarde, Oliver Hirschbiegel baseou-se parcialmente nas memórias dela, já então também disponíveis em livro, para rodar seu longa-metragem ficcional “A Queda – As Últimas Horas de Hitler”, com Bruno Ganz (Asas do Desejo) interpretando o ditador nazista em seu desespero final. Mas o melhor complemento para a entrevista filmada de Junge ainda estava por vir. É “Uma Vida Alemã”, um documentário dirigido por quatro cineastas (Christian Krönes, Olaf S. Müller, Roland Schrotthofer e Florian Weigensamer) que começou a percorrer o circuito internacional dos festivais no final do semestre passado, tornando-se um dos 15 semifinalistas ao prêmio de melhor filme não-ficcional do ano da Academia Européia de Cinema, a ser entregue em 10 de dezembro.
A entrevistada da vez é Brunhilde Pomsel, hoje com 105 anos, 103 na época das filmagens. Estenógrafa entre 1942 e 1945 de Joseph Goebbels (1897-1945), o ministro de Propaganda do III Reich, é ela a última sobrevivente alemã dos momentos derradeiros no “bunker” nazista.
Filmada em preto e branco, com as câmeras alternando planos americanos a “closes” que acentuam a aparência pedregosa das rugas que lhe formam o rosto, Pomsel recorda sua trajetória, algo similar à de Junge, de jovem “ingênua” que se tornou peça auxiliar da engrenagem no topo da hierarquia nazista. Ambas asseveram que apenas após o fim da guerra souberam do genocídio perpetrado pelo regime contra judeus, opositores e homossexuais.
Uma diferença fundamental de postura as distingue, contudo. Traudl Junge é uma alma torturada, enquanto Brunhilde Pomsel assume o papel de vítima algo arrogante, qualificativo que utiliza em relação a seu patrão para matizar um pouco a admiração por sua “elegância” e “compostura”.
Esta distinção essencial pautou os distintos dispositivos cinematográficos utilizados em “Eu Fui a Secretária de Hitler” e “Uma Vida Alemã”. No primeiro, nenhuma cena de arquivo ilustra a fala de Junge, contextualizada apenas por um par de letreiros. No segundo, frases de Goebbels sobrepostas a fundos pretos e registros fílmicos tanto feitos pelos nazistas como pelos aliados e pelos movimentos de resistência na Polônia e na Tchecoslováquia comentam quando não se contrapõem ao depoimento de Pomsel. “Quando começar a mentir, continue mentindo”, aconselha o número dois nazista numa das citações.
Há ecos da autodefesa de Adolf Eichmann (1906-1962) na forma com que Brunhilde Pomsel justifica seu engajamento ao regime nazista apenas como uma oportunidade profissional. Ela diz ter se tornado membro do partido, em 1933, apenas para ter acesso a uma vaga no departamento de notícias do sistema de rádio do III Reich, de onde saiu para trabalhar no ministério de Goebbels.
“É mau”, pergunta ela no começo do filme, “é egoista, quando alguém que foi colocado em certas posições tentar fazer algo que lhe é benéfico, mesmo quando se sabe que ao fazer isso acaba prejudicando outras pessoas?”
Pomsel ziguezagueia, afirmando ora ter “um pouco de consciência culpada”, ora “não me ver como culpada”. “Não sou do tipo que resiste. Sou uma das covardes”, afirma.
“Mas não podia me opor de maneira alguma. Era colocar a vida em risco”. Ainda assim, sustenta: “Eu não tinha nenhuma ideia do que estava por trás daquilo tudo. Bem, muito pouco, de todo modo”.
“A questão dos judeus”, sintetiza Pomsel. “Ninguém acredita em mim, mas eu só vim a saber disso (o Shoah – AL) após voltar de cinco anos em prisões russas. Eu sabia há algum tempo que existiam campos de concentração, mas que estavam queimando pessoas...”
A narrativa de Pomsel é pontuada pelo convívio com judeus, como que visando distanciar-se de acusações de antissemitismo. Um de seus primeiros empregos foi no escritório de um advogado judeu. A única amiga que cita durante o filme é também judia, Eva Lowenthal, que chegou a visitá-la na rádio nazista e a quem teria ajudado pontualmente com o agravamento da situação econômica da família.
Brunhilde Pomsel retornou a Alemanha em 1950. Quando da abertura do Memorial do Holocausto em Berlim, em 2005, buscou lá informações sobre o destino da amiga. Foi informada que ela morrera em 1945. “Foi tudo que havia”, diz. Os letreiros finais nos contam que Eva Lowenthal foi enviada ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em 1943.
“O mal existe”, filosofa Pomsel perto do fim. “Deus não existe mas o diabo certamente existe”. Faltou testemunhar que, uma vez dele cliente, é para toda a vida.