Por Amir Labaki
Para quem parecia condenado à aposentadoria com o fim da Guerra Fria (1945-1991), John Le Carré alcançou o ano de celebração de seu 85o aniversário, em outubro próximo, em extraordinária evidência. A adaptação de “O Gerente Noturno” pela BBC, exibida no Brasil pela AMC, acaba de ser indicada a nada menos que 7 Emmys (o Oscar da TV nos EUA). Lançado no Festival de Berlim, deve estrear logo por aqui a versão em longa-metragem de “Nosso Fiel Traidor”.
Um mês antes da efeméride, Le Carré manda para as livrarias seu livro de memórias, “The Pigeon Tunnel: Stories from My Life”. Desde o final do ano passado, já se encontra no mercado de língua inglesa sua biografia autorizada (Harper, 672 págs., US$ 28,99), escrita por Adam Sisman.
Será curioso descobrir o que Le Carré preservou para seu próprio relato autobiográfico que Sisman não tenha desenterrado para seu tijolaço. Todo o terço inicial de seu livro é dedicado ao processo de formação que levou David Cornwell a tornar-se, sob pseudônimo, um dos escritores de “thrillers” de espionagem mais lidos - e filmados - no mundo inteiro.
Sisman detalha minuciosamente a relação conflituosa de David com os pais. A mãe, Olive, abandonou os filhos (ele e o irmão mais velho, Anthony) ainda crianças, não suportando o convívio com Ronnie, seu marido e pai deles, um escroque ambicioso que fez e perdeu fortunas trambicando no mercado imobiliário, gramando até um breve período atrás das grades.
O primeiro talento do jovem David era para pintura e ilustração. A possibilidade de uma carreira no serviço de informações britânico apresentou-se a ele ainda aos 19 anos, servindo brevemente na Áustria ainda repartida entre os vencedores da Segunda Guerra, na aurora da Guerra Fria.
Enquanto cursava Oxford, David funcionou como informante do MI5 (o serviço interno de espionagem) sobre colegas com inclinações comunistas. Formado, casou-se e deu aulas durante dois anos, até em 1958 empregar-se em tempo integral no MI5. Transferido dois anos mais tarde para o serviço de espionagem internacional (MI6), trabalhou em Bonn e Hamburgo, na Alemanha então dividida.
O início de sua carreira literária data deste período. Sisman lembra o impacto sobre David de “Nosso Homem em Havana”, de Graham Greene, e o desejo do jovem escritor de desenvolver uma teia de personagens que revisitaria durante sua obra, como em “A Comédia Humana” de Balzac. O principal deles, George Smiley, um espião cinzento, eficiente e cornudo, já protagonizava o romance de estreia, “O Morto ao Telefone” (1961).
Como um pseudônimo era obrigatório para um agente escrevendo sobre o próprio cotidiano, o livro quase saiu sob a assinatura de “Jean Sanglas”. Felizmente não colou, mas a francofilia se repetiu no “nom de plume” definitivo: John Le Carré. Até trocar de vez o MI6 pela carreira literária, em 1964, Le Carré lançou ainda dois outros romances: “Um Crime Entre Cavalheiros” (1962) e, voilà!, “O Espião Que Saiu do Frio” (1963).
O mais cultuado dos “thrillers” sobre a Guerra Fria nasceu da experiência de primeira mão de Le Carré na Alemanha, durante a crise que levou à construção em 1961 pelos soviéticos de um muro separando os setores capitalista e socialista de Berlim. Quatro semanas após seu lançamento nos EUA em janeiro de 1964, “O Espião Que Saiu do Frio” liderava a lista de mais vendidos.
Pouco mais de um ano depois, chegava às telas, pelas mãos de Martin Ritt, a elegante versão cinematográfica para as torturadas escaramuças do espião britânico Alex Leamas (Richard Burton) com fidelidades e traições públicas e privadas na Berlim cindida. Para Le Carré, fama e fortuna; para a telona (e logo a telinha), um veio de ouro.
Contam-se desde então 20 “thrillers” (e um único romance existencial), publicados em intervalos de três anos em média. Na primeira fase, pré-queda do Muro, o tabuleiro da Guerra Fria enquadra os destinos de seus personagens. Na segunda, guinando curiosamente à esquerda, seus heróis combatem grosso modo a corrupção e a vilania de governos e corporações.
Dentre as 15 adaptações para cinema ou TV, o próprio Le Carré destaca três: a minissérie rodada em 1979 por John Irving com “sir” Alec Guinness como Smiley em “O Espião Que Sabia de Mais”; o filme inaugural por Ritt; e a adaptação de “O Jardineiro Fiel” dirigida em 2005 por Fernando Meirelles.
O que ele achou de “O Gerente Noturno”? Apesar de ter sido mantido quase apenas o argumento em torno de um gerente de hotel (Tom Hiddleston) que se torna agente britânico contra um inescrupuloso traficante internacional de armas (Hugh Laurie), Le Carré recepcionou-lhe a estreia com um ensaio simpático no diário britânico The Guardian. Ágil e tenso, matizado e sensual, não haveria mesmo razão para reclamar.