Por Amir Labaki
É difícil escrever no passado sobre Hector Babenco (1946-2016), falecido há uma semana. O impacto de sua obra corajosa e a energia de sua provocadora presença prometem pairar sobre nós durante bom tempo.
Argentino de origem judaico-ucraniana, brasileiro por opção, Babenco foi o que os americanos costumam classificar como um “maverick”, um desbravador de espírito independente, personalidade forte e vontade de aço. Autodidata e cinéfilo, legou-nos uma filmografia coerente e vigorosa de dez longas-metragens de ficção e um documentário de juventude (O Fabuloso Fittipaldi, codireção de Roberto Farias, 1975) em quatro décadas de atividade. Ainda mais teria feito, não fossem a autonomia radical e os percalços de saúde.
Babenco fez um cinema clássico, na contracorrente dos movimentos que o precederam, nomeadamente o Cinema Novo e o Cinema Marginal. Sua obra faz a ponte entre o cinema independente paulista dos anos 1960, de Luiz Sérgio Person, Roberto Santos e Walter Hugo Khouri, e o dos protagonistas da chamada Retomada, Walter Salles, Fernando Meirelles e José Padilha.
Sua produção divide-se em duas fases cristalinas, a social e a autobiográfica, com um filme de certa forma híbrido a só tempo confirmando e rompendo o esquema. O primeiro período combina a pegada cívica do cinema político italiano de Francesco Rosi (Salvatore Giuliano), Elio Petri (Investigação de Um Cidadão Acima de Qualquer Suspeita) e Damiano Damiani (Confissões de Um Comissário de Polícia), de um lado, e o foco em protagonistas humilhados e ofendidos do melhor cinema de John Huston (O Tesouro de Sierra Madre; A Cidade das Ilusões), de outro.
É este o universo cinematográfico geral, da estreia em “O Rei da Noite” (1975) ao épico “Brincando nos Campos do Senhor” (1990), alcançando o ápice na sequência de “Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia” (1977), “Pixote, A Lei do Mais Fraco” (1980), “O Beijo da Mulher-Aranha” (1984) e “Ironweed” (1987). Com “Lúcio Flávio” e “Pixote”, a destreza narrativa e a ousada crítica às instituições repressivas, ainda em plena ditadura, catapultaram Babenco ao primeiro time dos realizadores brasileiros, com o primeiro alcançando nas bilheterias nacionais quase 4 milhões de espectadores e o segundo estendendo mundo afora, mais especialmente nos EUA, seu reconhecimento crítico.
O talento raríssimo para a direção de atores, característico de toda a obra de Babenco, reluz em seus dois filmes seguintes, ambos rodados em inglês com protagonistas americanos, a partir de matrizes literárias. Adaptado do romance de Manuel Puig sobre o convívio no cárcere entre um homossexual (William Hurt) e um militante político (Raul Julia), o claustrofóbico “O Beijo da Mulher-Aranha” o tornou o primeiro cineasta latino-americano a receber uma indicação ao Oscar de melhor diretor, valendo ainda o prêmio de melhor ator a Hurt.
Três anos mais tarde, igualmente indicados foram os intérpretes de “Ironweed”, Jack Nicholson e Meryl Streep. Não venceram mas estão entre as maiores e mais originais de suas carreiras as performances como dois torturados alcoolátras nos anos finais da Grande Depressão em Albany, Nova York, a partir do romance de William Kennedy.
Amargo e fantasmagórico, povoado pelos demônios íntimos, “Ironweed” é, ao lado de “Pixote”, a obra máxima da carreira de Babenco. Se público e boa parte da crítica não se renderam ao filme, pior para eles.
Encerrando esta primeira fase, em “Brincando nos Campos do Senhor”, produzido pelo “mogul” independente americano Saul Zaents (O Estranho no Ninho; A Insustentável Leveza do Ser), vemos um Babenco fora de seu elemento como que pintando numa tela por demais gigantesca (a floresta amazônica). O todo representa uma soma inorgânica de algumas belas partes.
É um cineasta memorialista à Fellini o que ressurge depois da longa batalha vencida por Babenco contra o câncer. Não à toa, ele se alimenta de raízes literárias argentinas para dois dramas de formação e de relações amorosas, “Coração Iluminado” (1998, parceria com Ricardo Piglia) e “O Passado” (2007, adaptado de Alan Pauls).
Entre eles, um filme-síntese das duas fases, sua adaptação de “Carandiru”, de Dráúzio Varela, livro do médico e amigo que o tratou cuja escrita estimulou. Babenco retomava pela última vez, com renovado vigor cinematográfico, o registro de denúncia social de seus primeiros filmes, para uma revisão dantesca da barbárie carcerária nacional.
Inúmeras restrições merecem ser feitas a “Meu Amigo Hindu”, lançado comercialmente neste início de ano, com uma hipnótica performance de Willem Dafoe no papel do alter-ego do cineasta. Isso posto, em seu filme-testamento, Babenco desnuda o calvário de sua doença, com felliniana sensibilidade e fúria toda própria. É por demais belo que seja por meio de uma iluminada cena de dupla declaração de amor - ao cinema e à sua última musa - que se encerre o imenso cinema de Hector Babenco.