Por Amir Labaki, em Cannes
O conjunto da premiação do Festival de Cannes 2016, encerrado no último domingo, celebra a agudeza, o engajamento e o inconformismo dos chamados “novos cinemas” dos anos 60. É o traço comum entre o vencedor da Palma de Ouro, o britânico “Eu, Daniel Blake” de Ken Loach, entre o vitorioso do Olho de Ouro (o prêmio de documentário), o brasileiro “Cinema Novo” de Eryk Rocha, e a Palma de Ouro honorária, atribuída pela direção do festival, ao ator-símbolo da “nouvelle vague” francesa, Jean-Pierre Léaud, 71, o eterno Antoine Doinel do ciclo clássico de François Truffaut (1932-1984).
Prestes a completar 80 anos de idade e 50 anos de cinema, Loach é uma espécie de caçula do “Free Cinema” que deu um choque de frescor e realismo ao cinema britânico a partir de filmes como “Tudo Começou Num Sábado” (1960), de Karel Reisz, e “O Pranto de um Ídolo” (1963), de Lindsay Anderson. Seu triunfo neste ano o posiciona merecidamente, pelos fiéis laços entre sua impressionante filmografia e a história recente do festival, no restrito grupo dos detentores de duas Palmas de Ouro: Francis Ford Coppola, Bille August, Shohei Imamura, Emir Kusturica, os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne e Michael Haneke.
“Eu, Daniel Blake” devolve-nos à contundência do melhor Loach, o jovem ainda na década de 70 (Kes; Vida em Família) e o maduro dos anos 1990 (Chuva de Pedras; Ladybird; Meu Nome é Joe). Seu cinema já havia se afastado do semidocumentarismo social de sua produção mais característica –e mais convincente- quando da primeira vitória em Cannes, com “Ventos da Liberdade” em 2006, sobre a guerra pela independência irlandesa em 1920.
A Palma de Ouro 2016 foi para uma narrativa de despojamento absoluto e de transparência total em sua intenção de denúncia da falência do modelo de proteção social aos mais necessitados na Europa, Grã-Bretanha ainda incluída (plebiscito pelo “Brexit”: 23 de junho). Nos subúrbios carentes da Newcastle atual, um carpinteiro em licença médica (Dave Johns) enfrenta a kafkiana burocracia estatal e uma jovem mãe solteira desempregada (Hayley Squires) tenta de tudo para dar teto e comida ao casal de filhos pequenos.
Pode não ser especialmente original “Eu, Daniel Blake”, mas é indubitavelmente um soco no estômago. Talvez uma única cena, com a dupla de protagonistas visitando um banco de alimentos para desvalidos, tenha conquistado a segunda Palma para Loach. É desses momentos de cinema de que jamais esquecemos. Às vezes, para um júri dividido como foi o presidido por George Miller (Mad Max), é o elemento decisivo que encerra impasses.
No mais, a lista de premiados da disputa principal apenas reafirma quão bem blindados são os júris de Cannes –e quão imprevisíveis (idiossincráticas, dirão alguns) são suas escolhas. Os dois grandes símbolos disso foram, pela presença, o prêmio de melhor atriz para a filipina Jaclyn Jose de “Ma’Rosa” de Brillante Mendoza e, pela ausência, a esnobada total da comédia famliar “Toni Erdmann”, da alemã Maren Ade, escolhida como melhor filme pela crítica (Fipresci).
Se “Aquarius” de Kleber Mendonça Filho formou entre os preteridos pelo júri comandado por Miller, outros representantes brasileiros conquistaram reconhecimentos formais para a marcante presença nacional na Croisette. Por “Cinema Novo”, Eryk Rocha venceu o Olho de Ouro de melhor documentário, de cujo júri tive o privilégio de participar, enquanto João Paulo Miranda Maria obteve uma menção na disputa de curtas-metragens com “A Menina que Dançava com o Diabo”.
“Cinema Novo” superou ao final 17 outros concorrentes não-ficcionais, com a exibição especial de última hora de “Pershmerga”, o documentário sobre a causa curda dirigido pelo ensaísta francês Bernard-Henri Lévy. A justificativa do júri, presidido por Gianfranco Rosi (Fogo no Mar), classifica o filme de Eryk como “um ambicioso ensaio impressionista de um novo gênero, que nos lembra que o cinema hoje poderia ser ao mesmo tempo político e sensual, poético e engajado, formal e narrativo, ficcional e documental – uma interpretação de um mundo novo”.
Pouco mais de 24 horas após a premiação de Eryk Rocha, o pai dele, Glauber Rocha (1939-1981), era novamente lembrado, desta vez pelo homenageado Jean-Pierre Léaud, que o citou entre os grandes cineastas pelos quais foi dirigido. Léaud como Loach, da mesma forma que Glauber e a patota do Cinema Novo, formaram uma geração que há meio século recolocou fazer, assistir e debater filmes no centro da vida. Foi algo desta magia perdida que os prêmios de Cannes 2016, involuntariamente pois independentes entre si, buscaram recriar.