Por Amir Labaki
Há uma extraordinária sintonia entre os vencedores da 21a edição do É Tudo Verdade – Festival Internacional do Documentário, encerrado no último fim de semana. São histórias familiares três dos quatro premiados pelos júris oficiais: o longa-metragem hispano-brasileiro “O Futebol”, de Sérgio Oksman, o longa holandês “Um Caso de Família”, de Tom Fassaert, e o curta nacional “Abissal”, do cearense Arthur Leite. Em outro compasso desenvolve-se o premiado entre os curtas internacionais, o francês “A Visita”, do diretor italiano de teatro e cinema Pippo Delbono.
Já em cartaz desde ontem nos cinemas do país, “O Futebol” marca o retorno de Oksman a sua cidade de origem, São Paulo, da Madri onde se instalou há duas décadas. Sua filmografia foi acompanhada com atenção durante os 21 anos do É Tudo Verdade, com presenças na mostra informativa O Estado das Coisas com dois títulos, “Ronaldo: Manual de Voo” (1998) e “Gaudí na Favela” (2002), na abertura de 2007 com “Adeus, América” e em duas disputas de curtas internacionais, com o hemingwayano “Notas Sobre o Outro” (2009) e “Uma História para os Modlins” (2012), que lhe valeu a primeira premiação pelo festival.
Em “O Futebol”, Oksman registra o tenso reencontro com o pai, Simão, do qual há muito se distanciara, tendo por subterfúgio acompanharem juntos a Copa do Mundo no Brasil de 2014. O futebol, mais precisamente os jogos da mitológica segunda Academia do Palmeiras dos anos 1970, era o longíquo laço emocional que ligara durante a infância filho e pai. A aposta é que funcione com uma ponte para a reaproximação.
A progressão da Copa estrutura cronologicamente a narrativa, mas o torneio é acompanhado em fragmentos captados por trechos de jogos transmitidos pela TV e pelo rádio, por comentários entre eles e de coadjuvantes eventuais, por ruídos das ruas. O evento central não é ela, mas sim a reunião familiar, marcada por diálogos tateantes, por conversas truncadas e sobretudo por dilacerantes silêncios.
Uma estranha harmonia de tropeços estabelece-se entre aquele convívio planejado e a difícil progressão do Brasil na Copa. Ambos encaminham-se para conclusões dramáticas, uma ditada pela mera lógica esportiva, outra determinada pela força inapelável do destino. Filmado e editado com o esmero e a contenção habituais de Oksman, “O Futebol” é um modelo de filme-processo em que o acaso se reafirma como insuperável roteirista.
O mesmo vale para “Um Caso de Família”. O reencontro aqui é entre um neto, Tom Fassaert, e sua avó pelo lado paterno, Marianne Hertz, uma “femme fatale” que fugiu do cotidiano familiar na Holanda mudando-se há décadas para a África do Sul. Ao completar 30 anos, um convite surpreendente dela para uma visita catalisa em Fassaert a ideia do filme.
“Um Caso de Família” progride como uma espécie de diário íntimo da montanha-russa emocional provocada pelo reencontro, que se estende por anos incluindo dois dos três filhos deixados para trás do Marianne, Bob, pai de Tom, e Rene, seu tio torturado pelo abandono num orfanato. Uma reportagem de revista sobre a então modelo em ascensão, antigos filmes familiares e depoimentos doloridos e nebulosos vão compondo o quebra-cabeças da trajetória da avó vaidosa, egocêntrica e obsessivamente sedutora. Que este nunca seja completado é dos triunfos maiores de Fassaert.
É também na busca de desenterrar segredos familiares, silenciados a uma geração, que Arthur Leite iniciou a pesquisa que desembocou em “Abissal”. A interrogação inicial envolvia o passado do avô que jamais conheceu, mas é a surpreendente narrativa pessoal oferecida por sua avó que acaba por se impôr.
A pluralidade de estratégias narrativas do documentário contemporâneo, como exibida pela seleção do festival, foi espelhada pela premiação, entre os curtas internacionais, de “A Visita”. As fronteiras entre ficção e documentário mostram-se porosas: dois atores na vida real, o francês Michael Lonsdale e o italiano Bobò –este, um surdo-mudo resgatado para os palcos depois de mais de 40 anos de internação psiquiátrica-, percorrem o Palácio de Versalhes, numa intervenção entre metafísica e surreal.
Não há espaço, infelizmente, para tratar aqui das outras tendências refletidas por concorrentes destacados com menções honrosas. Cumpre celebrar de pronto, porém, o novo patamar alcançado entre nós pelo documentário histórico de arquivo com “Imagens do Estado: 1937-1945”, de Eduardo Escorel. Destacado com uma menção honrosa pelo júri brasileiro, o quarto episódio de sua série sobre o período varguista atinge agora seu apogeu, em duas partes totalizando quase quatro horas fulgurantes e hipnóticas.