Por Amir Labaki
Não dá para dizer que o Brasil fez pouco para
celebrar o centenário de nascimento de Orson Welles (1915-1985). Primeiro, o É
Tudo Verdade iniciou em abril as comemorações da efeméride, abrindo com uma
palestra de Jonathan Rosenbaum sua 14a Conferência Internacional do
Documentário e exibindo as duas principais contribuições dele para o gênero (o
inacabado “It’s All True” e “Verdades e Mentiras”). Em maio, mês de seu
nascimento, sua viúva, co-roteirista e atriz, Oja Kodar, veio ao país a convite
do Grupo Estação para uma ampla retrospectiva. Agora é a vez do Festival do Rio
homenageá-lo com a mostra paralela “Orson Welles in Rio”, no CCBB.
O ciclo apresenta uma série de debates, com destaque
para os encontros com James Naremore (dia 9) e Catherine Benamou (10), e dez
programas, formados por três de seus longas-metragens (Soberba, Otelo e
Falstaff –O Toque da Meia-Noite), três documentários recentes sobre ele
(assinados pelo americano Chuck Workman e pelas francesas Elisabeth Kapnist e
irmãs Clara e Julia Kuperberg), uma compilação de filmagens dispersas
apresentada pelo especialista Joseph McBride (Wellesiana) e duas preciosidades.
A primeira é o recém-redescoberto e restaurado “Too
Much Johnson”, uma paródia de comédia muda rodada por ele em 1938 para
acompanhar a montagem com sua trupe do Mercury Theatre da peça homônima do ator
e dramaturgo americano William Gillette (1853-1937). Isso nada menos que três
anos antes de Welles rodar seu primeiro longa, “Cidadão Kane” (1941). Não se
tratava, contudo, de sua primeira experiência cinematográfica, pois rodara aos
19 anos um curta, “The Hearts of Age” (1934), incluído na “Wellesiana”
organizada por McBride e disponível online no YouTube.
A segunda raridade encontra-se no primeiro dos dois
programas dedicados à telessérie “Volta Ao Mundo Com Orson Welles”, seis
episódios de 26 minutos rodados por ele em 1955 para a televisão britânica. A
grande atração é “Revisitando Viena”, a terceira parte, considerada perdida até
2011 e redescoberta por Ray Langstone na Wisconsin Historical Society.
Quando em 2002 o É Tudo Verdade marcou o sexagésimo
aniversário das filmagens por Welles de “It’s All True” no Brasil, dentro da
política de “boa vizinhança” do governo Roosevelt durante a Segunda Guerra, a
programação especial exibiu pela primeira vez no país os cinco episódios
completos e preservados de “Volta ao Mundo Com Orson Welles”. Faltava
o teledocumentário vienense, tido à época como perdido.
Em compensação, o ciclo apresentava “O Caso Dominici
por Orson Welles” (2000), de Christophe Cognet, recontituindo a polêmica que
levou à interrupção das filmagens nos Alpes franceses daquele que teria sido o
sétimo episódio, a respeito de um triplo homicídio que chocou a França no
imediato pós-guerra. O descobrimento da cópia de “Revisitando Viena”
permite-nos agora avaliar plenamente o conjunto, que acaba de ser lançado em
Blu-Ray e DVD nos EUA (B2MP, US$ 24,99 na Amazon) contendo as seis partes
originalmente transmitidas mais o documentário de Cognet (ausente de “Orson
Welles in Rio”).
Atribuo ao sabor da redescoberta a preferência pelo
episódio vienense assumida no texto que acompanha o Blu-Ray pelo crítico Peter
Tonguette, autor do curioso “Orson Welles Remembered: Interviews With His
Actors, Editors, Cinematographers and Magicians” (McFarland & Company,
2007, inédito em português). Ao contrário da lenda corrente durante os anos de
sumiço da cópia, o curta faz escassas referências à célebre passagem de Welles
pela capital austríaca, na aurora da Guerra Fria, para estrelar como o vilão
Harry Lime o clássico “O Terceiro Homem” (1949) rodado por Carol Reed
(1906-1976) a partir de roteiro de Graham Greene (1904-1991).
“Revisitando Viena” é uma ode algo nostálgica à
tradicional cultura dos cafés, com ênfase na fabricação e consumo de doces como
a torta Sacher. “Esta é uma torta de chocolate com uma diferença –uma imensa
diferença”, lambe os beiços o cineasta. Welles entrevista o gerente do hotel do
mesmo nome, uma supervisora de cozinha numa das docerias centrais da cidade e
uma de suas admistradoras.
Talvez em nenhum outro episódio fique mais clara a
razão de Welles ter definido a série para Peter Bogdanovich como “férias
documentadas”. É este o espírito dos demais curtas, os dois primeiros filmados no
país basco, o quarto em Saint-Germain de Près em Paris, o quinto com viúvas e
aposentados do bairro londrino de Chelsea e, por fim, a visita a uma tourada em
Madri, apresentada em sua primeira metade pelo jovem Kenneth Tynan (1927-1980,
o maior crítico de teatro britânico do pós-guerra e um “aficionado” do esporte
como Welles) e pela primeira senhora Tynan, a escritora americana Elaine Dundy
(1921-2008).
Sim, como documentarista Welles foi mais inovador
antes (It’s All True) e depois (Verdades e Mentiras), mas as diferenças de
enfoque entre os episódios e a presença carismática e inovadora dele diante das
câmeras, aqui mais repórter, ali mais memorialista, garantem ainda o frescor a
“Volta ao Mundo com Orson Welles”, seis décadas depois da estreia. Assim era
Welles.