Por Amir Labaki
Neste ano de marcantes efemérides
cinematográficas, talvez nenhuma seja maior entre nós do que a celebração do
centenário de nascimento do documentarista etnográfico Heinz Forthmann
(1915-1978). Se o nome nada lhe diz, não se recrimine: a obra dele é mais conhecida
nas universidades do que junto ao grande público, apesar de ter influenciado,
para ficar apenas no campo do cinema ficcional, obras recentes como “Kuarup”
(1989) de Ruy Guerra e “Xingu” (2011) de Cao Hamburguer.
O 48o Festival de Brasília
do Cinema Brasileiro comemora neste sábado o centenário de Forthmann com o
lançamento, pelo CTAv da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, de
um obrigatório DVD de introdução à sua obra. Encontram-se nele o belo documentário
de média-metragem “Heinz Forthmann” (1990), de Marcos de Souza Mendes, e nada
menos que três dos principais filmes do retratado: “Kuarup” (1962), “Jornada
Kamayurá” (1966) e o póstumo “Rito Krahô” (1971-1993). O DVD inclui ainda como
bônus entrevistas iluminadoras com Souza Mendes, professor da UnB que foi aluno
de Forthmann naquela universidade e se tornou o maior especialista em sua
produção.
Nascido em Hanover de pai alemão e mãe
brasileira, Forthmann mudou-se com a família para o sul do Brasil em 1932.
Iniciou-se como ilustrador e fotógrafo em Porto Alegre, transferindo-se para o
Rio em 1940. Depois de trabalhar em publicidade, teve o privilégio de ser
treinado como cinegrafista por um dos grandes pioneiros do filme etnográfico
brasileiro, Harald Schultz (1909-1966), do Serviço Nacional de Proteção ao
Índio (SPI).
Forthmann ingressou em 1942 na equipe do
SPI e, com o desligamento de Schultz, três anos depois, da equipe chefiada pelo
Marechal Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), Heinz se impôs logo como
seu mais talentoso fotógrafo e cineasta. Herdou assim o cetro do pioneiro
colaborador nestas áreas de Rondon, o major Luiz Thomaz Reis (1878-1940),
diretor do clássico “Ao Redor do Brasil” (1932).
Durante cerca de uma década e meia,
Forthmann foi o olho da câmera do SPI. Seu primeiro curta, “Guido Marlière – Um
Posto Indígena de Nacionalização”, rodado com os crenaques de Minas Gerais,
data de 1946. Quatro outros se sucederiam, até outro encontro
transformador: Darcy Ribeiro (1922-1997).
O fotográfo e cineasta e o antropólogo
então iniciante conheceram-se em 1949. “Ele tinha muito mais experiência de
índio do que eu”, confessa Darcy no documentário de Souza Mendes. “Ele
compreendia a grandeza de Rondon”.
Entre 1949 e 1953, Forthmann e Darcy
realizaram dois divisores de água no cinema etnográfico brasileiro: o
média-metragem “Os Índios Urubu”, rodado no Maranhão em 1950, e o
longa-metragem “Funeral Bororo”, realizado no Mato Grosso. “Até então”, lembra
Darcy, “a tendência era filmar um filme de dia de festa, filmar o índio todo
pintado, todo em plumas. Eu queria um filme diferente, um filme do dia a dia, o
índio na vida diária dele. E nós selecionamos um casal”.
Ponto para você que pensou em Robert
Flaherty (1884-1951) e em “Nanook, o Esquimó” (1922). “Os Índios Urubu” não
lança mão dos mesmos recursos de reencenação, mas assemelha-se na estrutura
dramática centrada em torno de um pai, uma mãe e um filho da tribo
urubu-caapor. Esta ênfase no cotidiano e na transferência de tradições
acompanharia o essencial do cinema posterior de Forthmann, seja em projetos
similares como “Jornada Kamayurá” (1966), que realizou para o INCE (Instituto
Nacional de Cinema Educativo), ou mesmo em filmes etnográficos mais voltados
para o registro de rituais, como a segunda colaboração com Darcy em “Funeral
Bororo” ou seu esplendoroso “Kuarup” (1962), sobre o mais célebre cerimonial
fúnebre índigena do Alto Xingu.
“É preciso preservar isso para preservar a
indianidade original”, frisou Darcy. No mesmo sentido, soma-se o depoimento
também a Márcio de Souza Mendes do cacique Takumã Kamayurá, após ver pela
primeira vez em filme sua própria imagem e a de sua tribo, duas décadas após o
registro – e constatar que os jovens índios não seguem mais àqueles rituais.
O cinema de Heinz Forthmann é essencial
por este caráter de documento etnográfico mas não menos importante é sua
dimensão estética. Seus filmes têm uma beleza plástica, uma elegância de
enquadramentos, um sentido de ritmo dramático, um respeito ético pelo coletivo
e pelo individual, com raros paralelos. Sim, é a antítese do que nossa história
tem reservado aos primeiros brasileiros.