Quando no começo da década deparei com a primeira referência a um romance cubano sobre o assassinato de Leon Trotski (1879-1940) no México pelo catalão Ramón Mercader (1913-1978), lembrei imediatamente de um notável documentário espanhol sobre o mesmo tema que tive o privilégio de assistir no final dos anos 1990. A recente visita ao Brasil de Leonardo Padura impeliu-me finalmente a ler “O Homem Que Amava os Cachorros” (Boitempo, 592 págs) e, confirmando minha tese, eis abrindo a lista de agradecimentos os diretores espanhóis de “Assaltar Os Céus” (1996), Javier Rioyo e José Luis López-Linares.
Não tive a oportunidade de perguntar a Padura em que momento de sua extensa pesquisa, na dúzia de anos que se dedicou a preparar o romance, tomou contato com o filme de Rioyo e López-Linares. Por certo, como sinaliza a honrosa referência citada, serviu-lhe de fonte essencial para uma das três linhas narrativas em que se desenvolve o livro, exatamente aquela que recupera a trajetória de Mercader de filho da burguesia abastada de Barcelona a sicário stalinista agonizante, em meados dos anos 1970, na Cuba de Fidel.
Os dois outros enredos tratam do longo exílio (1928-1940) a que Trotski foi condenado por Stalin -inicialmente na república soviética do Casaquistão, a seguir na Turquia, França e Noruega até a parada final no México-, e do decisivo encontro com Mercader, na Havana da metade dos anos 1970, que retira da aposentadoria como escritor o fictício Iván Cárdenas Maturelli, indisfarçável alter-ego de Padura.
“O Homem Que Amava os Cachorros” funda-se assim em dois terços de narrativa documental e um terço de autoficção, ou ficção embebida em traços autobiográficos. Iván não é Padura, este jamais encontrou Mercader, mas Iván é forjado a partir do testemunho deste seu quase contemporâneo sobre cerca de trinta duríssimos anos de voluntária permanência em Cuba.
Generosamente, Padura identifica as principais fontes de árdua pesquisa que alimentam a construção narrativa de Iván. Para a reconstituição da vida de Trotski, um personagem estigmatizado pelo regime fidelista mesmo até as vésperas da “glasnost” soviética, a referência principal é a clássica trilogia biográfica publicada entre 1954 e 1963 pioneiramente por Isaac Deutscher (no Brasil, editada pela Civilização Brasileira).
Quanto à reconstrução da misteriosa vida de Mercader, que assumiu os nomes de guerra Jacques Mornard e Frank Jacson durante a missão homicida entre 1938 e 1940 e Jaime López na Cuba dos 70, a obra essencial foi a pioneira biografia publicada na Espanha em 1990 por seu irmão caçula, Luis Mercader (1923-1998), “Ramón Mercader, Mi Hermano: Cincuenta Años Después” (Meu Irmão: 50 Anos Depois), da qual não encontrei referência de edição brasileira. É mais que provável que o livro de Luis tenha sido a base sobre a qual se erigiu, pouco mais de meia década após sua publicação, também o roteiro de Javier Rioyo para “Assaltar Os Céus”, no qual o mano de Rámon aparece como um dos principais entrevistados.
Luis Mercader é apenas um dos vários personagens reais de maior ou menor expressão no romance que temos o privilégio de ver e ouvir em depoimentos ao filme. Aqueles que mais se fixaram em minha memória são Laura, uma das três filhas adotivas de Ramón; seu advogado mexicano Eduardo Ceniceros; a francesa Maria Crapeau, amiga da trotsquista americana (Sylvia Ageloff) cuja sedução por um Mercader sob disfarce facultou a ele o acesso a Trotski; Mark Sharon, um dos guarda-costas americanos do ex-líder soviético que capturou seu assassino momentos após o ataque fatal; e Esteban “Seva” Volkov, o neto de Trotski que morava com os avós na trágica fortaleza improvisada em Coyoacan. O impacto destes reencontros não é dos motivos menores para que apenas depois da leitura do livro se assista ao filme no Youtube.
Um dos mais célebres entrevistados de “Assaltar Os Céus”, o escritor cubano dissidente Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), dedicou em 1967 uma das partes de seu romance máximo, “Três Tristes Tigres” (José Olympio, 518 págs.), a descrever o assassinato de Trostski em breves paródias dos estilos de colegas compatriotas como Alejo Carpentier, Lezama Lima, Nicolás Guillén e Virgilio Piñera. Quase meio século depois, Leonardo Padura encarou o desafio a sério, como uma espécie de Tólstoi de três náufragos da utopia socialista.
É para poucos libertar Trotski da casaca de ferro, temperar de compaixão um retrato do vil Mercader e criar em Iván uma espécie de sobrinho escrevinhador do Sérgio de “Memórias do Subdesenvolvimento” (1968). Ao fazer um balanço amargo do revolucionarismo socialista do século 20, “O Homem Que Amava os Cachorros” ilumina também o futuro ao afirmar a vitalidade presente do romance.