Omar Sharif foi enterrado duas vezes desde sua morte por ataque cardíaco
no Cairo há uma semana. No domingo, o segundo sepultamento fez seu corpo
repousar em sua terra natal, comovida pelo adeus à primeira grande estrela
árabe a conquistar Hollywood e o mundo. O primeiro acontecera por meio dos
obituários laudatórios na aldeia midiática global, quase unanimemente dedicados
a plantear o galã exótico oriundo do Oriente Médio que, depois da explosão nos
anos 1960 pelas mãos de David Lean em “Lawrence da Arábia” (1962) e “Doutor
Jivago” (1965), ocupou manchetes e imaginários ns últimas décadas antes como
celebridade e jogador de bridge do que como competente ator.
Essa carinhosa despedida driblou como pôde a maldição de Sharif. Exceto
pela longevidade, seu destino não se distingue no essencial do de Carmen
Miranda (1909-1995). Foram ambos “talentos exóticos” que se deixaram capturar
pela indústria cinematográfica, Hollywood à frente, numa espécie de pacto
faústico que os perturbou até o fim dos dias.
Ambos pagaram com suas identidades o acordo mefistofélico. Carmen foi
mumificada no clichê da extravagante sedutora latino-americana, enquanto
inversamente Sharif viu-se multiplicado como o eterno conquistador ou machão
estrangeiro -isto é, não-americano. No processo, os dois viram-se, no auge da
fama, hostilizados por seus países de origem. A Sharif, ao menos, foi
felizmente concedida a graça de um terceiro ato reconciliatório.
Na última semana muito foi relembrada a consagração de Sharif no mundo
ocidental, com a indicação ao Oscar por “Lawrence”, o Globo de Ouro por
“Jivago”, o Leão de Ouro pela carreira em 2003 em Veneza, o César no ano
seguinte por “Uma Amizade Sem Fronteiras”, mas passou-se ao largo de sua
complexa e tensa relação com os povos árabes. Foi lá que Sharif conheceu seu
primeiro e seu último sucesso, separado por um longo período em que se tornou
“persona non grata”.
Antes de ser apresentado ao grande público internacional pelo demorado
plano em que seu xerife Ali Ibn el-Kharish aproxima-se do enviado britânico
Lawrence nas areias do deserto, Omar Sharif já era a principal estrela
masculina do cinema egipcío, com doze filmes no currículo. Ele debutara pelo
alto em “Céu do Inferno” (1953) de ninguém menos que Youssef Chahine
(1926-2008), o mais importante realizador do país no pós-guerra. No filme,
Sharif contracenava com a rainha dos melodramas egipcíos, Faten Hamama
(1931-2015).
A paixão escandalosa iniciada no “set”, sendo Faten casada e já mãe,
tornou-se casamento, com o cristão de origem Michel Dimitri Shalhoub
convertendo-se ao islamismo, sob o novo nome de Omar al-Sharif, por amor à
neo-divorciada. Foi uma decisão de conveniência antes do que por convicção, com
Sharif afirmando-se agnóstico “mas tolerante” até o fim dos dias.
A tolerância não foi contudo recíproca. Incomodado pelo clima repressivo
do regime de Gamal Abdel Nasser (1918-1970), em meados dos anos 1960 Sharif
mudou-se para Paris, logo separando-se de Faten e ficando mais de uma década
sem retornar a seu país. Em 1968, na esteira da radicalização no Oriente Médio
pela Guerra dos Seis Dias, uma foto de divulgação de “Funny Girl – A Garota
Genial” de William Wyler, em que beijava Barbra Streisand, de origem judaica,
causou furor no Egito recém-derrotado e levou ao banimento de seus filmes.
Apenas em 1977, ao encontrar em Washington o sucessor de Nasser, Anwar
al-Sadat (1918-1981), Sharif pôde retornar a seu país natal para uma visita, já
resignado ao cotidiano nômade e solitário que abraçara numa carreira
cinematográfica cada vez mais ditada pela rapidez dos cheques e não pela
qualidade dos filmes. Um quarto de século mais tarde, o ator revelaria como, a
pedido de Sadat, intermediou junto ao então primeiro ministro israelense,
Menachem Begin (1913-1992), a pioneira viagem do líder egípcio a Israel,
sedimentando o caminho para o histórico acordo de paz de Camp David de 1978.
A partir de sua participação em 1983 em “Ayoub”, adaptado de um conto do
futuro prêmio Nobel Naguib Mahfouz (1911-2006), Sharif voltou a participar
pontualmente de produções egípcias, enquanto continuava a ganhar a vida em
filmes e telesséries de ocasião, com uma ou outra exceção. Por protagonizar
como São Pedro um telefilme da RAI, a Al-Qaeda chegou inutilmente a pedir-lhe a
cabeça em 2005.
Egito e Sharif reconciliaram-se de vez apenas em sua década final, a tempo
do ator, na volta definitiva para casa, aplaudir as manifestações da Praça
Tahir. Em 2008 ele protagonizou “Hassan e Marcus” ao lado da maior estrela
cômica do país, Adel Imam. É belo que, numa época de radical animosidade na
região, tenha sido uma comédia em defesa da tolerância religiosa que propiciou
a Omar Sharif seu derradeiro mega-sucesso –ainda que estritamente pan-árabe.
