Por Amir Labaki
Já era tempo: Mário de Andrade (1893-1945) é o grande homenageado da 13a Festa Literária de Paraty, a Flip, que acontece a partir da próxima quarta-feira. “Poeta, narrador, ensaísta, musicólogo, folclorista e líder cultural”, como o definiu Antonio Candido, o autor de “Macunaíma” (1928) foi também crítico de cinema, por ele mesmo classificado como “a criação artística mais representativa de nossa época”. Pena que esta relação ainda pouco estudada não tenha pautado uma mesa ou sequer uma projeção no evento.
Resumem-se essencialmente em dois textos já editados os estudos sobre Mário e o cinematógrafo. Em 2010, Paulo José da Silva Cunha compilou os 19 artigos dedicados por Mário a obras e questões cinematográficas entre 1922 e 1945, comentando o conjunto num posfácio (Mário de Andrade no Cinema, Editora Nova Fronteira). São comentários espalhados pelas várias publicações com quais colaborou o escritor modernista, de revistas como “Klaxon”, “Clima” e “Espírito Novo” a colunas em jornais como o “Diário Nacional”, “Diário de S. Paulo” e “Folha da Manhã”.
A vereda já havia sido aberta em 1992 por um primoroso ensaio escrito pelo cineasta Eduardo Escorel, “A décima musa – Mário de Andrade e o cinema”, recuperado em sua antologia “Adivinhadores de Água” (Cosac Naify, 2005). Em pouco mais de 50 páginas, Escorel discute as citações e influências cinematográficas na obra ensaística e literária (poética e narrativa) de Mário e sintetiza a evolução de seus escritos críticos sobre o cinema.
“O padrão das relações de Mário de Andrade com o cinema foi sempre o mesmo; tomado como uma das referências centrais em sua reflexão estética, os filmes estrangeiros exibidos em São Paulo eram vistos com interesse, mas pouca ou nenhuma importância foi dada por ele ao cinema brasileiro”, sintetiza Escorel. Esta omissão diante da produção nacional funciona como motor de sua análise.
Como sempre, Escorel fala com conhecimento de causa. Nenhum cineasta brasileiro esteve mais vinculado à obra de Mário de Andrade do que ele. Foi montador da versão tropicalista (e algo oswald-andradiana) de “Macunaíma” dirigida por Joaquim Pedro em Andrade em 1968, estreou na direção de longas-metragens com “Lição de Amor” (1976), uma delicada (e mais fiel) adaptação do primeiro romance do escritor, “Amar, Verbo Intransitivo” (1927), e retomou em documentário uma das grandes personalidades musicais descobertas por Mário em “Chico Antônio, Um Herói com Caráter” (1982).
A leitura de “A décima musa” e “Mário de Andrade no Cinema” torna ainda mais surpreendente o fato de que tão pouco empenho crítico tenha se dado ao assunto. O cinema marca inequivocamente sua poesia (Fox-Trot; Carnaval Carioca), seus ensaios estéticos (Prefácio Interessentassímo; A Escrava Que Não Era Isaura) e em especial “Amar, Verbo Intransitivo” (“um romance... Cinematográfico”, escreveria ele).
Por Amir Labaki
Embora parcimônio em seus escritos específicos, Mário foi um frequentador assíduo das salas de cinema. Das recordações de seu amigo Rubem Borba de Moraes (1899-1986), aprendemos que ele “assistia com o maior interesse aos filmes nacionais exibidos em São Paulo”.
Ainda assim, Mário dedicou apenas um artigo a uma “fita” brasileira, logo o primeiro, de junho de 1922. Sem maior entusiasmo, e com algum paternalismo, comenta “uma tentativa de comédia”, “Do Rio a São Paulo para Casar”, que atribui apenas à “empresa Rossi”, sem referir-se a seu diretor, ninguém menos que o pioneiro José Medina (1894-1980), um dos principais cineastas em atividade no país.
Nas resenhas, colunas e ensaios que publicou pelos vinte anos seguintes, não se encontra qualquer outro comentário, ainda que pontual, a um filme brasileiro. Nem mesmo uma obra mais afeita à sensibilidade modernista como o clássico silencioso “Limite” (1930), de Mário Peixoto, arranca-lhe uma palavra. É como se por demais o perturbasse o que Escorel define como “o descompasso” entre a produção nacional do período e “as demais formas de manifestação artística”.
Só nos resta lamentar pois Mário revela-se um exegeta fílmico de mão cheia. Como raros críticos da época, discute os filmes para muito além do mero entrecho, mostrando sensibilidade para questões de direção, atuação, fotografia e cenografia, e recorre a analogias com outras artes, música e pintura sobretudo, para balizar suas reflexões.
Mário tem fascinio por Carlitos (“O Garoto” no topo) e um fraco pela comédia muda em geral, combate o uso de intertítulos na era silenciosa, reclama do facilitarismo musical do princípio do cinema sonoro e louva o expressionismo alemão, o cinema russo, as animações de Walt Disney, o documentário britânico e “a cosmopolista Hollywood”.
Ele não se ilude, porém: “A cinematografia é uma arte que possui muito poucas obras de arte”, escreve em 1922. Complementaria, em 1934: “Tem dois cinemas: o cinema como criação, isto é, o cinema-arte, e o cinema como sensualidade, isto é o cinema-comércio”. Oito décadas passadas, o que mudou de essencial do que sacou Mário de Andrade?