Por Amir Labaki, de Cannes
Seja qual for a escolha do júri presidido pelo irmãos Joel e Ethan Coen
para a Palma de Ouro do 68o. Festival de Cannes, o filme-evento do ano não
estará na lista oficial dos premiados neste domingo. O tríptico "As Mil e
Uma Noites", do cineasta português Miguel Gomes, participou apenas da
mostra paralela Quinzena dos Realizadores.
A uma safra menos favorável somaram-se erros de escolha e a disputa principal
de Cannes 2015 longe ficou de empolgar. Faltando ainda ver os últimos títulos
em concurso, até aqui a Palma de Ouro ficaria em boas mãos se atribuída a um
dos dois mais jovens realizadores da disputa, o grego Yorgos Lanthimos por
"A Lagosta" ou o húngaro Lászlo Nemes por "O Filho de
Saul". Correm por fora o italiano Nanni Moretti, por "Minha
Mãe", e o americano Todd Haynes, com "Carol".
"A Lagosta" tiraria um pouco a gravata borboleta da Palma. É uma
bem-humorada distopia sentimental sobre uma sociedade em que o casamento é
literalmente questão de sobrevivência. Solteiros são encaminhados a um hotel
com um prazo de 45 dias para encontrar um novo par. Do contrário, são
transformados em animais.
Tudo lembra muito o futuro cínico da telessérie britânica "Black
Mirror", criada em 2011 por Charlie Brooker tendo por modelo a clássica
"Além da Imaginação". Nada há de ruptura estética, ok, mas Lanthimos
nos transporta para um universo novo e absurdo, como num pesadelo por demais
coerente e real.
"O Filho de Saul" também quase chega lá. O estreante Lászlo Nemes nos
leva ao campo de concentração de Auschwitz-Birkenau em seus últimos dias. Cola
sua câmera no rosto de Saul (Geza Röhrig) de maneira claustrofóbica. Saul é
membro do "Sonderkommando", o grupo de judeus forçado a realizar
tarefas brutais pelos nazistas.
O cotidiano macabro dos campos se descortina pelas margens esfumadas do quadro
dominado pelo rosto de Saul e pela cacofonia de ruídos que acompanha seus
movimentos. O enredo centra-se no desafio de preservar para um funeral judeu
tradicional o cadáver de um garoto, mas é secundário. Nemes peca pelo excesso
de respeito às restrições criadas por ele próprio, o que é quase virtude dada a
concorrência.
Em "Minha Mãe", Moretti volta à ficção de raízes autobiográficas de
"Caro Diário" (1994) e ao trauma do luto como em "O Quarto do
Filho" (Palma de Ouro 2001). A lenta agonia da sofisticada mãe, professora
de latim, zera o jogo para seu casal de filhos, vividos por Moretti e
Marguerita Buy. O que sempre foi nunca mais será, parece dizer o mestre italiano
parafraseando Paul Auster.
Por sua vez, em "Carol" Todd Haynes adapta um pioneiro romance
lésbico publicado sob pseudônimo por Patricia Highsmith em 1952. Cate Blanchett
é a rica "wasp" que joga tudo para o ar (casamento, maternidade,
segurança) ao se apaixonar por uma jovem vendedora, interpretada por Rooney
Mara (Os Homens Que Não Amavam as Mulheres). A previsibilidade geral e um quê
de "lesbian chic" me incomodam, mas "Carol" parece ser um
dos raros consensos deste festival.
Outro, e talvez o maior de todos, é "As Mil e Uma Noites". Três
filmes, cada um com cerca de duas horas, apenas inspirados pela estrutura do
clássico literário. A estrutura episódica serve para Miguel Gomes acertar as
contas com a presente crise social e econômica portuguesa.
Durante cerca de um ano, Gomes e uma pequena equipe improvisaram esquetes para
a câmera a partir de notícias de jornal. Há de tudo: ficção, fábula,
documentário, depoimento, autoficção. É tudo cinema, feito com talento e
urgência, raiva e humor. Uma Palma seria pouco.