Por Amir Labaki
Num ano de crises como este, encerrar um
festival como o É Tudo Verdade vendo-o alcançar novo patamar de reconhecimento
nacional e externo, de público e de crítica, e celebrando com imenso êxito sua
20a edição desafia qualificativos. Partimos agora para
itinerâncias em Belo Horizonte (próxima semana), Santos (7 a 10/5)
e Brasília (27/5 a 1/6), com 2016 já rondando a cabeça.
As premiações oficiais sinalizaram
vertentes diversas que têm revigorado a produção não-documental. Veterano
participante nas disputas do festival, o franco-cambojano Rithy Panh alcançou o
prêmio máximo na competição de longas-internacionais com sua primeira e
original incursão no documentário de arquivo.
“A França é a Nossa Pátria” faz um balanço
crítico e sóbrio do colonialismo francês na Indochina, a partir de imagens,
como diria Paulo Emílio, tanto feitas pelos ocupantes como pelos ocupados. Já a
menção honrosa atribuída a “Hora do Chá”, da chilena Maite Alberdi, destaca a
radicalização das lições do Cinema Direto possibilitada pela tecnologia digital
quanto à extensão dos tempos e da intimidade de registro, além de sinalizar a
vitalidade da nova safra latino-americana.
Por sua vez, o vencedor entre os curtas
internacionais, “Supercondomínio” da estreante polonesa Teresa Czepiec,
radiografa com extraordinário apuro visual o maior edifício residencial da
Polônia, construído na década de 1960 em pleno centro de Katowice. “Urso”, do
alemão Pascal Floerks, menção honrosa na categoria, aponta para a expansão das
fronteiras do possível na exploração dos avanços tecnológicos também no campo
do documentário, aqui em sua marcante vereda autobiografica recente.
É também o impacto do digital que
viabilizou a realização do lírico vitorioso entre os curtas nacionais,
“Cordilheira de Amora II” de Jamille Fortunato. Utilizando a câmera de seu
telefone celular, a jovem cineasta capta o imaginário lúdico de uma indiazinha
Guarani Kaiowá de uma aldeia no Mato Grosso do Sul, em que se mesclam tradição
e contemporaneidade.
O triunfo na disputa de longas-metragens
brasileiros de “A Paixão de JL” de Carlos Nader consolida-o definitivamente
entre os principais criadores audiovisuais em atividade no país.
Foi sua segunda vitória consecutiva, após
vencer no ano passado com “Homem Comum”, e a terceira na história do festival,
somando-se a premiação em 2008 de “Pan-Cinema Permanente”.
Estilisticamente muito distintos, o trio
apresenta inequívocas marcas comuns, a começar da vontade de filme inerente a
seus três protagonistas. Nos casos do poeta Waly Salomão (1943-2003) de
“Pan-Cinema Permanente” e do caminhoneiro Nilsão de “Homem Comum” , esta
vontade se expressa pelo constante incitamento do registro ao cineasta pelos
protagonistas. Já no retrato do artista plástico Leonílson (1957-1993), não por
coincidência como Waly amigo de Nader e também como Waly de morte tristemente precoce,
a gravação de um diário em fitas cassete preparara voluntariamente o esqueleto
sonoro-documental para intervenção póstuma pelo documentarista.
Cada um dos três filmes de certa forma
amolda-se a seu protagonista, verbocêntrico com Waly, peregrino como Nilsão,
minimalista como Leonílson, mas também a seu realizador, obcecado por vida e
morte, sonho e cotidiano, arte e realidade, sofrimento e redenção.
Compreende-se assim o gesto de Nader de atribuir-lhes, sobretudo a seus dois
colegas artistas, uma dimensão de co-autoria em seus retratos, mas trata-se de
evidente exagero pautado por admiração e generosidade.
Há assim muito a guardar na memória desta
20a edição. Alternando-me entre São Paulo e Rio de Janeiro pela
ponte-aérea durante dez dias, alguns flashes cruzam-me a mente neste primeiro
instante de pausa. A abertura em ambas cidades com o filme póstumo de Eduardo
Coutinho, “Últimas Conversas”, com a tocante fala de uma criança sobre “deus é
o homem que morreu”. Jonathan Rosenbaum tirando do baú uma velha coluna de
Orson Welles sobre o Carnaval brasileiro. Vladimir Carvalho hipnotizando com
suas memórias o público da 14a. Conferência Internacional do
Documentário – Petrobras. O reencontro entre Jorge Bodanzky e Wolf Gauer no
palco do lançamento pelo IMS do dvd de “Iracema, Uma Transa Amazônica”
(co-direção de Orlando Senna) quarenta anos após a parceria no filme. O
depoimento do repórter José Casado, de “O Globo”, sobre a sutileza da presença
da cineasta Laura Poitras durante as filmagens no Rio de “Cidadãoquatro”.
Festival é tanto o que passa nos cinemas
quanto os encontros fora deles. Os primeiros se reproduzem nas inúmeras telas
da era digital; os segundos, apenas nas telas intímas de nossas memórias. Que
assim seja.