Como espetáculo, a 87a. cerimônia do Oscar, no último domingo, parecia uma festa de empresa animada pelo Gugu, escrita por Danilo Gentili, em que o funcionário do ano é o vendedor argentino. Na premiação, destacou-se a aparência de excepcionalismo, privilegiando-se o excessivo, o extravagante, o ruidoso. Muitas vezes passa por justo. Raramente o é.
Autocrítica e autocongratulação combinaram-se na consagração de “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)”, do mexicano Alejandro González Iñarritu. É como se, por meio do prêmio máximo da Academia, Hollywood estivesse dizendo: “Sim, nossa energia está dedicada a fazer megaproduções infantilizadas, mas ainda podemos realizar cinema com ‘C’ maiúsculo: ambicioso, irreverente, erudito”.
Citações culturais à parte, a começar do entrecho em torno de uma adaptação teatral na Broadway de um original de Raymond Carver, o mesmo poderia ser dito de “Boyhood” de Richard Linkater, acrescentando-se ainda a dimensão da modéstia. Mas “Birdman” é mais espalhafatoso e pop, enquanto “Boyhood” privilegia o realismo e a contenção.
Foi fácil, então, minimizá-lo com apenas um prêmio secundário, o merecido reconhecimento para Patrícia Arquette como atriz coadjuvante, e concentrar as estatuetas principais (filme, diretor, roteiro original e fotografia) no som e fúria da saga do ex-astro hollywoodiano que tenta reinventar-se no palco. Filmado aos poucos durante doze anos, “Boyhood” é uma obra sobre o tempo, registrado na mente e no corpo dos protagonistas de seu drama familiar tão único quanto universal. Rodado para dar a impressão de desenvolver-se numa última tomada, num “tour de force” operado pela câmera do mago mexicano Emmanuel Lubezki (premiado pela segunda vez consecutiva, depois do Oscar no ano passado por “Gravidade”), “Birdman” é um filme sobre a arte, um tema mais palatável para uma comunidade alérgica ao envelhecimento, como simbolizado em plena cerimônia pelas faces plastificadas de John Travolta e Nicole Kidman.
O desequilíbrio na premiação de ambos oculta o que têm em comum: de um lado, a excelência de projetos fílmicos atípicos; de outro, as irregularidades de ambos os roteiros. Enquanto Linklater exagera no minimalismo dramático de “Boyhood”, Iñarritu -nem mesmo amparado por uma brigada de co-roteiristas- evitou o recorrente tropeço de todos os seus filmes no ato final, sempre redundante e impreciso.
A Academia simplesmente fechou a porta para o primeiro e os olhos frente ao segundo, distinguindo “Birdman” imerecidamente com o Oscar de roteiro original. Neste campo específico, muito mais apropriado teria sido reconhecer a ourivesaria da recriação do universo de Stefan Zweig em chave cômico-expressionista por Wes Anderson em “O Grande Hotel Budapeste”, uma obra muito mais coesa que acabou contemplada também com quatro Oscars, embora todos em categorias técnicas (direção de arte, figurino, maquiagem e trilha).
Quando vi Sean Penn entrar no palco para a entrega do Oscar de melhor filme, dois pensamentos se atropelaram. Primeiro: deu “Birdman”, dada a parceria anterior dele com Iñarruti em “21 Gramas” (2003). Segundo: o que ele estaria pensando depois de testemunhar com diferença de 48 horas duas vitórias tão retumbantes quanto a de “Birdman” em Los Angeles e a de “Timbutku”, do cineasta franco-mauritânio Abderrahmane Sissako, na sexta dia 20, na entrega do César (o Oscar francês), durante a qual Sean recebeu um prêmio especial?
“Timbutku” quase monopolizou a cerimônia do 40o. César ao receber nada menos que sete prêmios (melhor filme, diretor, roteiro original, montagem, fotografia, som e trilha), sendo derrotado dois dias mais tarde derrotado na disputa do Oscar de melhor filme de língua não-inglesa pelo austero drama polonês “Ida”, de Pawel Pawlikowski. Essa esnobada pela Academia americana apenas frisa o notável contraste de sensibilidades expressa neste ano entre ela e seu similar francês. Enquanto o Oscar consagrou o filme que melhor radiografava seu umbigo, o César enalteceu uma obra que ilumina o estado do mundo.
Sissako nos oferta uma parábola contemporânea sobre o impacto da selvageria jihadista no continente africano. Tudo se passa no interior do Mali, numa região recém-dominada por uma gangue de extremistas islâmicos, primos do Boko Karam de origem nigeriana. A bucólica vida muçulmana de província, salpicada por toques de modernidade como celulares e SUVs, sofre a repressão do implemento pela força de uma versão radical da xariá. Mulheres devem usar luvas, toda música está proibida, chibatadas são penas comuns, execuções podem se dar a pedradas.
Várias pequenas tramas giram em torno da tragédia que atinge uma família de muçulmanos moderados formada por pai, mãe e filha. Em precisa hora e meia, Sissako apresenta a essência desumana do jihadismo e destrói o mito corrente que equipara islã e barbárie. “Timbutku” é uma obra-prima a um só tempo serena e urgente.
Centrais assim ao César, o político e o polêmico tiveram no Oscar de se infiltrar pelas brechas dos discursos de agradecimento, como as falas de Patricia Arquette sobre equiparação salarial para mulheres, de Laura Poitras (vencedora do Oscar de documentário) sobre a invasão oficial da privacidade denunciada por Edward Snowden, dos músicos Common e John Legend (melhor canção, de "Selma") sobre as novas faces da discriminação aos negros. Zapt-zupt, a orquestra tocava e lá vinha mais uma piadinha infâme. E, na hora H, tome “Birdman”.
Todo mundo acompanha o Oscar, mas desta vez quem fez a coisa certa foi o César.