Vladimir Carvalho completa 80 anos neste sábado, dia 31, fazendo o que gosta: documentário. Ele trabalha na etapa final de seu novo filme, um retrato de um dos grandes pintores modernistas brasileiros, o pernambucano Cícero Dias (1907-2003).
Paraibano de nascimento, brasiliense honorário, Vladimir é figura essencial na história do cinema brasileiro. Vários de seus colegas no topo do panteão dedicaram-se tanto à ficção quanto ao documentário. Só ele é documentarista puro-sangue, numa obra que abarca mais de meio século de atividade em sete longas-metragens e mais de duas dezenas de curtas, todos não-ficcionais.
Vladimir é a ponte entre a geração que modernizou o documentário brasileiro, lançando as bases do Cinema Novo, com sua participação decisiva na produção do pioneiro “Aruanda” (1960) de Linduarte Noronha, e o atual momento de inédita atividade criativa do gênero. A câmera de Vladimir, como fora a de Chris Marker (1921-2012), nunca está em repouso, sempre pronto ele para filmar o que o mobiliza, para posterior estruturação em obras acabadas.
Convencionou-se dividir sua filmografia em dois grupos principais, entre os documentários nordestinos (A Bolandeira, 1968, O País de São Saruê, 1971) e os brasilienses (Brasília Segundo Feldman, 1980, Conterrâneos Velhos de Guerra, 1992). É uma esquematização útil e verdadeira, que introjeta a marcante carga autobiográfica de toda sua produção, mas que ao tempo oculta a extraordinária coerência de seu cinema.
A experiência brasileira do homem nordestino é o elo temático unificador da obra de Vladimir Carvalho. Sua câmera flagra a luta pela sobrevivência, no sertão como na nova capital federal, nas decadentes usinas de cana como na construção da utopia de JK. É assim que os dois fílmes-sínteses de seu cinema são “O País de São Saruê” e “Conterrâneos Velhos de Guerra”.
Não é a toa, tampouco, que Vladimir tenha dedicado uma tetralogia, a ser completada com o filme sobre Cícero Dias, a algumas das mais marcantes personalidades nordestinas do último século das artes e política no Brasil. “O Homem de Areia” (1982) destaca a trajetória de José Américo de Almeida (1887-1980), o paraibano que lançou as bases da segunda fase do romance modernista com “A Bagaceira” (1928) e participou ativamente da política nacional sobretudo durante a era Vargas.
“O Evangelho Segundo Teotônio” (1984), por sua vez, radiografa a trajetória de latifundiário conservador à Quixote da redemocratização nos anos 1980 do senador alagoano Teotônio Vilela (1917-1983). Já em “O Engenho de Zé Lins” (2007), a recuperação da vida e obra do autor de “Menino de Engenho” (1932) e “Fogo Morto” (1943), o paraibano José Lins do Rego (1901-1957), eleva a novo patamar o entrelaçamento entre memória e história. Resta-nos agora esperar com ansiedade o resultado do encontro de Vladimir como o que define como “a sombra atraente e aliciadora de Cícero Dias”.
Esta fidelidade temática por vezes eclipsa o justo reconhecimento à originalidade estética dos documentários de Vladimir. Destacado pioneiramente por Jean-Claude Bernardet, o tratamento do som em seus filmes é dos mais inovadores em nossa produção. Basta lembrar, para ficar num exemplo, a rica teia sonora, combinando poesia, música, narração e depoimentos, que dribla a inviabilidade do uso do som direto em “O País de São Saruê”. Aos que se surpreenderam ao vê-lo recentemente realizar “Rock Brasília” (2011), frise-se que o cinema de Vladimir manteve sempre não apenas os olhos mas também os ouvidos bem abertos.
Não recordo, porém, qualquer referência ao fato de Vladimir assinar com o próprio corpo à maioria de seus filmes. Muito antes do documentário performático de Michael Moore e mesmo do dialógico de Eduardo Coutinho, Vladimir apresenta-se diante da câmera como um misto de maestro e entrevistador, modesto e tímido, sutil e cordial, na tela como na vida. O estilo é o homem.
Parabéns, Vladimir – e muito, muito obrigado.