Num ano entristecido pela perda de tantos mestres do documentário, foi algo reconfortante assistir no recente Festival Internacional de Documentários de Amsterdã (IDFA) a um espécie de testamento em filme de um dos grandes que se foram no ano passado, o americano Les Blank (1935-2013). Co-dirigido por Gina Leibrecht, o póstumo “How to Smell a Rose: A Visit With Ricky Leacock in Normandy” (Como Cheirar Uma Flor: Uma Visita com Ricky Leacock na Normandia) celebra um dos mais extraordinários artistas dedicados ao cinema, o diretor e diretor de fotografia britânico Richard Leacock (1921-2011).
Nenhum outro cineasta amarrou as pontas da história do documentário como Ricky. Seu grande mentor no ofício foi ninguém menos do que o principal pioneiro do gênero, Robert Flaherty (1884-1951), diretor de “Nanook, O Esquimó” (1922). Leacock filmou as tropas americanas no front asiático durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), foi ao lado de Robert Drew (1924-2014) e D. A. Pennebaker o principal artífice da revolução técnica do equipamento cinematográfico do Cinema Direto na virada dos anos 1950 aos 60 e abraçou pioneiramente o desenvolvimento das câmeras digitais que tanto contribuiram para o novo impulso para o gênero no século 21.
“How to Smell a Rose” exala a velha amizade entre Les e Ricky. O filme tem a informalidade dos diários filmados, registrando uma das últimas visitas do cineasta americano ao colega em seu bucólico retiro no interior da França. Enquanto entretém seu hóspede com suas receitas de “pot-au-feu” e “tarte tatin”, Leacock discorre sobre suas mais de sete décadas dedicadas à atividade cinematográfica.
Ricky descreve seu trabalho aos 27 anos como diretor de fotografia para o último filme de Flaherty, “Louisiana Story” (1948), como “uma experiência milagrosa”. Rodado na região pantanosa ao sul do estado sulista americano, o docudrama entrelaça o cotidiano próximo à natureza de um garoto da etnia “cajun” com a chegada de uma empresa de petróleo à região.
“Muito complicado”, é como Leacock define Flaherty já de saída. “Ele não era como nenhum outro diretor que encontrei, antes ou depois”. A meticulosidade era um de seus traços essenciais.
“Ele usa a câmera como um instrumento de pesquisa”, explica Ricky. Em seguida, recorda a resposta dada pelo mestre à pergunta que ouviu uma vez : “Como se ensina alguém a filmar?” “Como se ensina alguém a cheirar uma rosa?”, retrucou Flaherty.
Dez anos mais tarde, depois de um longo período devotado a documentários sobretudo para a televisão britânica, Ricky aplicou seu conhecimento técnico para o desenvolvimento das câmeras mais leves que garantiram uma nova mobilidade e intimidade aos registros da escola do Cinema Direto. A prova de fogo foi acompanhar a campanha pela indicação à candidatura do Partido Democrata dos EUA em 1960 do jovem senador John Fitzgerald Kennedy (1917-1963).
O resultado fez história e chama-se “Primárias” (Primary, 1960, disponível em dvd), de Robert Drew. Transmitido originalmente pela TV americana, destacou-se de pronto por capturar com inédita proximidade o corpo-a-corpo com o eleitorado do carismático JFK. “Nós eramos os únicos com um equipamento portátil lá”, recorda Ricky.
Quatro anos mais tarde, já trabalhando em dupla apenas com Pennebaker, ele acompanharia os bastidores das eleições primárias de outra campanha presidencial, desta vez a de Barry Goldwater pelo Partido Republicano. Uma cena tornou-se clássica, na qual os debates de um grupo de assessores é interrompido por uma discussão sobre qual filé havia sido pedido por quem.
Em 1972, Ricky descobriria num comercial de TV que a cena havia sido “chupada” por Hollywood na tentativa de insuflar autenticidade ao drama político “O Candidato”, estrelado por Robert Redford e dirigido por Michael Ritchie. A cópia não funcionava, explica Ricky, pois lhe faltava a faísca do acidental, do não-planejado, do inusitado que temperava seu registro original.
“Eu gosto dos pequenos incidentes”, confessa Leacock. Para complementar adiante: “Você deve desenvolver um relacionamento com a pessoa que você está filmando. Mesmo com as pessoas com as quais antipatiza”.
Ricky teve mais de meio século de documentarismo profissional para aprimorar seu método, filmando com igual empatia centenas de anônimos e dezenas de personalidades do século passado, de Marcel Duchamp a Leonard Bernstein, de Ernest Hemningway aos Rolling Stones.
Seus preferidos? Foram três. O primeiro dos primeiros-ministros da Índia independente, Jawaharlal Nehru (1889-1964), “me tratava como a um filho”; a atriz Louise Brooks (1906-1985), “nada mais a dizer”; e o compositor russo Igor Stravinski (1882-1971), “um cara tremendamente interessante”.
Em 1996, tive o privilégio de conversar uma única vez por mais de uma hora com Richard Leacock, durante um festival em Leipzig, Alemanha. Reencontrei aquela fascinante personalidade no filme de Les Blank e Gina Leibretch. É com este tipo de mágica que derrota a morte esta rara arte chamada cinema. Feliz Natal!