Por Amir Labaki
Ao leme da redação do “The Washington Post”, um jornal sem maior relevo antes de ele lá chegar em 1965, Ben Bradlee (1921-2014) talvez tenha mais que ninguém catalisado vocações para jornalismo na segunda metade do século 20. Falecido na semana passada, há muito aposentado mas ainda formalmente ocupando o posto de vice-presidente do jornal, sua imagem foi imortalizada no cinema com os pés sobre a mesa de trabalho e o sorriso salutarmente cético do grande Jason Robards (1922-2000) em “Todos os Homens do Presidente” (1976).
Premiado com o Oscar de coadjuvante pelo desempenho magnético na versão de Alan J. Pakula (1928-1998) do best-seller de Bob Woodward e Carl Bernstein sobre os bastidores do escândalo Watergate, Robards transpôs para a tela o carisma irresistível do editor responsável pelas corajosas revelações que colocaram de vez o “Post” no mapa da grande imprensa americana e mundial e tiraram Richard Nixon (1913-1994) da Casa Branca em agosto de 1974.
O clássico thriller de Pakula, disponível em DVD por aqui, resistiu muitíssimo bem à passagem do tempo. Para melhor compreender o impacto da liderança editorial de Bradlee, vale conferir ainda ao menos a dois documentários americanos recentes, um dos quais ainda inédito mesmo nas salas dos EUA.
O primeiro e mais antigo já passou por aqui e venceu o É Tudo Verdade 2010 (ex-aequo com “O Balé da Ópera de Paris” de Fred Wiseman): “O Homem Mais Perigoso da América: Daniel Ellsberg e os Documentos do Pentágono”, de Judith Ehrlich e Rick Goldsmith. Ex-analista militar dos EUA, veterano ele mesmo de batalhas no Vietnã, Ellsberg foi o precursor dos “whistleblowers”, modelo reconhecido para a atuação recente de Edward Snowden.
No auge do envolvimento militar americano no Vietnã e das manifestações de protesto nos EUA, Ellsberg copiou documentos governamentais sigilosos que revelavam as potocos apresentadas pelas administrações Lyndon B. Johnson e Nixon ao Congresso, à mídia e à opinião pública visando justificar a escalada belicista. Depois de tentar infrutiferamente que membros do Senado americano assumissem a responsabilidade de dar publicidade às 7 mil páginas de documentos que passaram para a história como os “Papéis do Pentágono”, o ex-analista formado em Harvard vazou-os em meados de 1971 para o “The New York Times”.
Quando o governo Nixon obteve uma decisão judicial impedindo a continuidade da publicação pelo “NYT”, Bradlee entrou em cena. Uma dia depois da inédita proibição, Ellsberg contatou por meio de um terceiro seu velho amigo e editor de política nacional do “Post”, Ben Bagdikian. Como lembra num dos capítulos mais emocionantes de seu livro de memórias, elegantemente entitulado “A Good Life” (Simon & Shuster, 1995), Bradlee o embarcou na tarde seguinte para buscar em Boston um pacote com 4 mil páginas dos Papéis do Pentágono.
Na manhã seguinte, Bradlee montava em sua própria casa uma força-tarefa de jornalistas para esmiuçar a documentação, ao mesmo tempo em que toureava a resistência de advogados e executivos do “Post” quanto à imediata publicação. Seu golpe de mestre foi estabelecer contato telefônico em Chicago com a ex-coquete Katharine Graham (1917-2001), que herdara o posto de “publisher” do “Post” após o suicídio de seu marido, Philip, em 1963. Tendo sido levado ao jornal por “Kay”, Bradlee convenceu-a, durante uma conferência telefônica da qual participavam os mais graduados recalcitrantes, a autorizar a publicação. “Não publicar a informação”, escreveria ele, “teria sido como não salvar um homem se afogando ou não dizer a verdade”. O resto é história.
A decisão posicionou o jornal “na linha de frente” da imprensa americana, robustecendo-o para as enormes pressões que enfrentou a partir de um ano mais tarde para interromper as reportagens investigativas de Bernstein e Woodward sobre as chicanas de Nixon para acobertar o envolvimento de sua administração na invasão da sede do Partido Democrata em Washington. Muito menos conhecido, porém, é que pouquíssimo antes do caso Ellsberg Bradlee já havia aberto um precedente de confrontação com as vontades do Executivo quanto à publicação de vazamentos considerados jornalisticamente relevantes.
É o que conta Johanna Hamilton no eletrizante “1971”, lançado em abril passado pelo Festival de Cinema de Tribeca em Nova York. Em março daquele ano, um grupo de oito militantes pacifistas invadiu e roubou documentos da sucursal do FBI na eloquentemente batizado distrito de Media, no Estado da Pensilvânia.
A papelada revelava as ações intimidatórias da tropa de J. Edgar Hoover (1895-1972) contra militantes pelos direitos civis, em especial por meio de um programa secreto e ilegal de vigilância chamado COINTELPRO. Apesar do episódio não constar das memórias de Bradlee, a cineasta destaca a participação dele para que o “Post” participasse da cadeia de jornais que matou no peito as pressões de Hoover e publicou a documentação.
Foi o embrião dos casos Ellsberg e Watergate. Assim era Ben Bradlee.