Por Amir Labaki
Se a vida e a obra da filósofa política Hannah Arendt (1906-1975) deram filme pelas mãos competentes de Margarethe von Trotta, por que não Susan Sontag (1933-2004)? Ok, Arendt foi retratada num longa ficcional e Sontag num novo documentário, mas o desafio essencial é o mesmo: abordar em cinema uma vida dedicada a ideias.
Merecedor de uma menção especial quando de seu lançamento no Tribeca Film Festival em abril passado e em cartaz neste sábado e na próxima segunda no Festival do Rio, “Sobre Susan Sontag” tem um título original mais ambíguo e complexo. “Regarding Susan Sontag” tanto quer dizer, como aponta o título nacional, “tratando de” como, numa dimensão aqui perdida, “olhando para”. A duplicidade de significado, emprestada do último volume lançado em vida por Sontag (“Regarding the Pain of the Others”, “Diante da Dor dos Outros” na edição brasileira da Companhia das Letras, 2003, 112 págs, R$ 26), é uma sacada da diretora Nancy D. Kates, frente a uma personagem tão fascinada pela escrita sobre o universo das imagens (fotografia e cinema, sobretudo) quanto pela construção de uma icônica imagem pública dela mesma, fotogênica como inegavelmente era.
Desmentindo a frase de Scott Fitzgerald de que não há segundo ato nas vidas americanas, Kates desenvolve seu documentário como que parafraseando e embaralhando a fórmula adotada por Isaac Deutscher em sua pioneira e influente biografia em três volumes do líder revolucionário marxista Leon Trótski (1879-1940). A primeira parte de “Sobre Susan Sontag” poderia ter por subtítulo “Profeta Banida”, ao abordar a formação de uma garota em tudo precoce de origem judaica. Segue-se “Profeta Armada”, cobrindo o período de meteórica afirmação de Sontag como uma das ensaístas mais ousadas e originais dos EUA dos anos 1960 (“Contra a Interpretação”), encerrando-se o filme com a “Profeta Desarmada”, na sua busca de afirmação como artista ela própria durante as últimas décadas de incessante atividade.
Como no caso de Arendt, é complexa e dinâmica a relação de Sontag com suas raízes judaicas. Nascida Susan Rosenblatt em Nova York, a escritora e sua irmã mais jovem, Judith, adotaram o sobrenome do padrastro Nathan, segundo explica a caçula, como uma forma de driblar as pequenas mas explícitas manifestações de antissemitismo que vivenciavam no cotidiano mesmo na vida escolar.
Um subterfúgio, portanto, não uma renúncia. Nas palavras da própria Susan: “Sinto, como judia, uma responsabilidade especial de aliar-me com os oprimidos e fracos”. Esse engajamento político marcou toda sua trajetória, do editorial da ainda adolescente contra o anticomunismo emergente nos EUA logo na aurora da Guerra Fria à recusa ao discurso autovitimizante do país diante da barbárie terrorista dos ataques de 11 de setembro.
Sontag talvez tenha sido a principal voz feminina americana –e imagino como ela odiaria esta classificação por gênero- na última grande era dos intelectuais públicos, participando assim de uma tradição originária sobretudo na França que adotou como segunda pátria. Essa vertente hoje marcadamente decadente, como argumenta seu filho David Rieff, acompanha tanto os escritos quanto as andanças mundo afora de Sontag, da visita como convidada ao Vietnã do Norte comunista em plena guerra com os EUA ao mergulho na Iugoslávia em dissolução e guerra civil de meados dos anos 1990, quando mergulhou numa montagem teatral de “Esperando Godot” de Beckett em plena Sarajevo.
“Eu gosto dessa posição opositora, de expressar posições dissidentes”, afirma Sontag numa das incontáveis entrevistas certeiramente recuperadas por Kates. Outra declaração ajuda a precisar o retrato: “Escritor é alguém apaixonado por tudo”, decreta a autora de “Sob o Signo de Saturno” (L&PM).
Assim era Sontag: uma curiosidade onívora; uma sexualidade explosiva e polivalente, com predileção e afinal opção sem militância pelo lesbianismo; uma obsessão produtiva admirável, “duas horas de escrita por dia, no mínimo” já se obrigava desde os 20 e poucos anos; uma cinéfila militante, com o mínimo de uma ida semanal ao cinema com a fé, a regularidade e o fervor com que um católico comparece todo domingo à missa.
“Queremos ser raptados pelo filme”, escreveu Sontag, na mesma época em que ajudava a desbravar para o conservador público médio americano dos dramas de Ingmar Bergman (Persona) ao subestimado papel social das ficções científicas nos chamados “filmes B” (A Conquista do Espaço).
Não surpreende, assim, que tenha ela mesma testado a mão como diretora de cinema. Realizadas à convite na Suécia na virada dos anos 1960 para os 70, as duas primeiras experiências, “Dueto para Canibais” e “Irmão Carl”, não empolgaram, apesar da evidente filiação bergmaniana. “Terras Prometidas”, segundo ela “um documentário por assim dizer” rodado em Israel em 1974, provocou maiores ondas ao desagradar tanto a israelenses quanto a palestinos. Em 1983, adaptou por fim um de seus próprios contos algo autobiográficos, rodando em Veneza “Visita sem Guia”.
“Narrativa é o que perdura”, justificava-se Sontag em seus anos finais, empenhada em afirmar sua voz também como romancista (O Amante do Vulcão; Na América). “Não foram recebidos com o tipo de reconhecimento que ela esperava receber”, comenta elegantemente a colega sul-africana –e Prêmio Nobel- Nadine Gordimer (1923-2014).
O filme de Kates frisa como ela pode ter perdido alguns batalhas mas já havia vencido a guerra, lançando luz sobre uma obra a quem hoje tantos devem tanto sem o saber. Sontag, sem se conformar, a isso bem compreenderia -e como ninguém nos explicaria.