Na última segunda-feira, o Festival Internacional de Cinema de Toronto celebrou o 25o. aniversário da pré-estreia no evento de um dos mais influentes documentários contemporâneos, “Roger & Eu” (1989) de Michael Moore, com uma projeção especial na presença do realizador. Apesar da modesta votação ao filme na recente pesquisa entre cineastas e especialistas pelo British Film Institute (BFI), “Roger & Eu” representa um marco no novo status alcançado pelo gênero no panorama audiovisual do último quarto de século.
Um ex-jornalista de origem provinciana numa família de raízes católicas e irlandesas, Michael Moore tornou-se o mais conhecido documentarista da história ao desenvolver um estilo que combina reportagens ancoradas por ele mesmo à edição bem-humorada de materiais de arquivo para tratar de questões sociais sob um ponto de vista de esquerda. Sua fórmula mescla elementos do documentarismo engajado de Peter Davis (Corações e Mentes, 1974) e Kevin Rafferty (Café Atômico, 1982) e das investigações históricas em primeira pessoa com acento pop de Marcel Ophuls (A Dor e A Piedade, 1969).
Sua presença ostensiva e encrenqueira à frente da câmera e em suas narrações irônicas em “off” estabeleceu uma persona fílmica de popularidade e carisma inéditos no gênero. Muitos mundo afora procuraram imitá-lo, mesmo por aqui, sem grande sucesso, com a possível exceção do americano Morgan Spurlock (Supersize Me - A Dieta do Palhaço).
Num evento prévio à comemoração há dois anos do cinquentenário do Festival de Cinema de Nova York (disponível no YouTube), seu então diretor Richard Peña, em debate público com Michael Moore, não hesitou em afirmar que a presente “era do documentário começou com ‘Roger & Eu’” (disponível em DVD). Moore retribuiu lembrando como foi a consagradora première novaiorquina naquele evento que convenceu a Warner a adquirir os direitos do filme para “uma distribuição ampla” e sem precedentes em 1300 salas de cinema nos EUA.
Produzido de forma artesanal pelo diretor, a partir sobretudo de investimentos próprios e de conhecidos, “Roger & Eu” custou à época apenas US$ 160 mil, arrecadando mais de 40 vezes mais nas bilheterias (US$ 6,7 milhões), numa performance sem paralelo na história do gênero para documentários não-musicais. Nada mal para um filme que trata do impacto do fechamento de 11 fábricas de automóveis da GM que desempregaram mais de 35 mil pessoas na região da cidade natal de Moore, Flint, Michigan. O Roger do título é o então presidente da empresa, Roger Smith (1925-2007), a quem Moore caça o filme inteiro, sem sucesso, em busca de uma entrevista. Roger se aposentou cinco meses após o lançamento comercial do filme.
Na citada conversa com Peña, Moore lembra ainda como, antes de “Roger & Me”, contava-se nos dedos de uma mão o número de documentários que haviam superado a barreira de US$ 1 milhão de ingressos vendidos nos EUA e, desde então, mais de uma centena de filmes superou largamente esta marca. Entre estes, cinco realizados por ele próprio.
No topo da lista está seu documentário crítico-satírico à escalada intervencionista, dentro e fora dos EUA, da presidência de George W. Bush, “Fahrenheit 11 de Setembro” (2004), que lhe valeu a Palma de Ouro em Cannes e uma arrecadação recorde de US$ 119 milhões apenas nas bilheterias americanas. Em 9o. lugar encontra-se “S.O.S. Saúde” (2007), sobre o direito universal ao acesso à saúde pública. Dois postos abaixo está “Tiros em Columbine” (2002), sobre a obsessão armamentista dos americanos, e no 17o. lugar, seu mais recente filme, “Capitalismo: Uma História de Amor” (2009), sobre a crise econômica mundial detonada a partir de Wall Street em 2008. “Roger & Me”, passadas duas décadas e meia, ainda se garante na 26a posição dos documentários mais vistos em salas de cinemas nos EUA.
Mas Michael Moore está longe de ser uma unanimidade – e não apenas devido a seu posicionamento político. Entre outras coisas, liberdades com a cronologia de eventos e com a apresentação como espontâneas de cenas previamente acertadas valheram-lhe críticas acerbas, de ensaios de polemistas renomados como o finado Christopher Hitchens (1949-2011) a contra-documentários tendo-o como único alvo.
A seu crédito, Michael Moore respondeu sempre minuciosamente a cada ataque, mantendo uma intensa atividade online (www.michaelmoore.com) e também editorial, com nada menos que oito livros publicados, muitos dos quais best-sellers (mesmo no Brasil). Além disso, deve-se reconhecer que cada vez mais sólidas tornaram-se suas pesquisas com o desenvolvimento da carreira, assim como mais coesos, divertidos e precisos têm sido seus mais recentes filmes, mesmo que nem sempre convincentes frente à complexidade dos assuntos abordados.
É de cada um concordar ou não com Michael Moore, simpatizar ou não com seus filmes e seu personagem. Mas é inegável sua contribuição ímpar para conquistar um novo espaço para o documentário de longa-metragem, romper de vez o mito de sua “neutralidade”, estabelecer um novo subgênero batizado pelo renomado Bill Nichols como “modo performático” e, por último mas nada menos importante, garantir um lugar privilegiado para o humor na tradicionalmente sisuda narrativa fílmica não-ficcional. Não é para qualquer um.