A imagem pública do escritor russo Boris Pasternak (1890-1960) parecia condenada para sempre a ser identificada com o amor impossível de Omar Sharif e Julie Christie, embalado pelo tema-chiclete composto por Maurice Jarre, no melodrama épico “Doutor Jivago” (1965) dirigido pelo britânico David Lean. E Pasternak, morto apenas três anos após a publicação do livro, nem viveu para assistir à estreia da versão cinematográfica do único romance por ele escrito.
Muito antes de o filme arrebatar dez indicações ao Oscar (cinco vitórias, incluindo um para Jarre) e tornar-se uma das maiores bilheterias de todos os tempos, outra academia já escolhera Pasternak para receber o Prêmio Nobel de Literatura de 1958, distinção primeiro aceita e depois recusada por um autor acuado pela máquina repressiva soviética –já após, frise-se, a desestalinização khruchoviana.
Boris Leonidovitch colheu estoicamente o que plantou –e de sobra. Seus últimos anos foram vividos sob estrita vigilância em sua “dacha” em Peredelkino, a cerca de 20 quilômetros de sua Moscou natal. Expulso do sindicato oficial de escritores, passou privações com sua família, enquanto centenas de milhares de dólares de direitos autorais acumulavam-se no Ocidente. Sua amante, Olga Ivinskaya (1912-1995), foi também vigiada, perseguida e presa duas vezes –a segunda, 75 dias após a morte do escritor.
A trágica saga final de Boris Pasternal jamais foi narrada com maiores detalhes do que em “The Zhivago Affair – The Kremlin, the CIA and the Battle Over a Forbidden Book” (O Caso Jivago – O Kremlin, a CIA e a Batalha em Torno de um Livro Proibido, Panthen Books, 356 págs, US$ 26,05), de Peter Finn e Petra Couvée. Atual editor de Segurança Nacional no diário americano “The Washington Post”, Finn dirigiu o escritório em Moscou do mesmo jornal, enquanto Couvée ensina na Universidade Estatal de São Petersburgo.
A partir de extensa pesquisa internacional, sobretudo de documentos até há pouco inéditos tanto nos arquivos americanos quando nos da ex-URSS, a dupla de autores transforma num envolvente “thriller” da Guerra Fria tanto a conturbada história da publicação de “Doutor Jivago” quanto a própria biografia de Pasternak. A principal revelação detalha como a CIA se envolveu diretamente na difusão, sobretudo na própria URSS e nos demais países da chamada “Cortina de Ferro”, do livro proibido e condenado pelo regime soviético.
“A operação para imprimir e distribuir ‘Doutor Jivago’ foi realizada pela Divisão Russo-Soviética da CIA, monitorada pelo diretor da CIA Allen Dulles e sancionada pelo Conselho de Coordenação de Operações do Presidente Eisenhower, que se reportava ao Conselho de Segurança Nacional da Casa Branca”, escrevem Finn e Couvée. “A agência providenciou a impressão de uma edição em capa dura em 1958 na Holanda e imprimiu uma edição minituarizada do romance em capa mole em sua sede em Washington em 1959”.
Note-se, assim, que a agência americana nada teve a ver com a edição original italiana de “Doutor Jivago” lançada em 1957. Devemos o feito ao corajoso e idiossincrático editor milanês Giangiacomo Feltrinelli (1926-1972), um membro do arejado Partido Comunista Italiano que jamais encontrou Pasternak e enfrentou todo tipo de pressão para cancelar a publicação e devolver os originais contrabandeados –até mesmo um telegrama formatado pelas autoridades soviéticas que o encurralado escritor foi forçado a assinar. Mas, por trás da agressiva campanha estatal e partidária, Pasternak e Feltrinelli estabeleceram uma inquebrantável relação de confiança, recorrendo à troca de cartas e mensagens através de emissários cúmplices.
Finn e Couvée esmiuçam como uma das vozes poéticas mais originais e populares da Rússia imediatamente pré e pós-revolucionária mergulhou de forma obsessiva, por mais de uma década, na elaboração de seu único romance (BestBolso, 752 págs, R$ 25). Como escrevem na introdução, “’Doutor Jivago’ não era uma polêmica, um ataque à URSS ou uma defesa de um outro sistema político. Seu poder reside no espírito individual, no desejo de Pasternak encontrar alguma comunhão com a terra, alguma verdade na vida, algum amor”.
Desenvolvendo-se fundamentalmente entre 1903 e 1929, “Doutor Jivago” acompanha as desventuras do casal de amantes extraconjugais formado pelo médico e poeta Iúri Jivago e a militante politica Larissa Antipova, atravessando as turbulências de mais de um quarto do século 20 russo, marcado por três revoluções (1905, fevereiro e outubro de 1917), duas guerras (a agora centenária de 1914-1918 mais a guerra civil, de 1917 a 1922, entre os bolcheviques e o contra-revolucionário “Exército Branco”) e a escalada repressiva de Lênin a Stalin.
Para Pasternak, que temperou a narrativa com evidentes elementos autobiográficos, tratava-se da “principal e mais importante obra, a única de qual não me envergonho e pela qual respondo sem pestenejar”. Para o establishment soviético, “a ideia do romance é falsa e mesquinha, tirada de um monte de lixo”, e Pasternak se tornara um “porta-estandarte da Guerra Fria”. Já para a CIA, segundo um memorando desenterrado por Finn e Couvée, o livro representava uma "exposição passiva, mas penetrante, do efeito do sistema soviético sobre a vida de um cidadão inteligente e sensível".
Apenas no começo de 1988, no auge da “glasnost” de Gorbatchev, os leitores russos, já quase ex-soviéticos, puderam ler a íntegra de “Doutor Jivago”, ironicamente numa publicação em série pela mesma revista literária, “Novy Mir” (Novo Mundo), que primeiro a rejeitara. Como no calor do lançamento apostara Edmund Wilson, “para seus inimigos em sua pátria, eu prevejo que seus filhos, entre doses de vodka e de chá, estarão falando da relação entre Larissa Fyodorovna e Pasha e Iúri Andreievich”. Agora, sob as novas luzes de Finn e Couvée, é a vez de seus netos, que talvez nem saibam assobiar o “Tema de Lara”.