Não deu outra: depois de ser incluído há dois anos pela primeira vez entre os dez filmes mais importantes da história do cinema na pesquisa decenal da revista britânica Sight & Sound do British Film Institute (BFI), “O Homem com a Câmera de Filmar” (1929) do diretor soviético Dziga Vertov (1896-1954) venceu por larga vantagem o primeiro levantamento similar feito exclusivamente sobre documentários. Anunciados na semana passada, os resultados da votação dos “melhores documentários de todos os tempos” começaram a ser detalhados ontem no site do BFI (www.bfi.org.uk) e merecerão destaque na edição de setembro da tradicional publicação.
É um feito e tanto para um filme silencioso, durante longo tempo relegado ao segundo plano da história do cinema, de um cineasta que desenvolveu isoladamente sua carreira, realizou suas principais obras na aurora do gênero e antes da Segunda Guerra (1939-1945) e morreu no mais absoluto ostracismo. “O Homem Com a Câmera de Filmar” (disponível em DVD e no YouTube) transcende o ciclo de “sinfonias da metrópole” do cinema internacional dos anos 1920, amalgamando pela montagem imagens colhidas em Moscou, Kiev e Odessa num feérico filme-manifesto sobre o poder revolucionador do próprio cinema.
Como escreve o ensaísta britânico Brian Winston, num trecho do ensaio especial para a Sight & Sound adiantado pelo site do BFI, “a agenda de Vertov com ‘O Homem com a Câmera de Filmar’ sinaliza nada menos que o documentário pode sobreviver a destruição digital da integridade da imagem fotográfica e também, como queria Vertov, ‘mostrar-nos a vida’. Vertov é, de fato, a chave para o futuro do documentário”. Foi convencido disso que o É Tudo Verdade no ano passado dedicou-lhe sua mais abrangente retrospectiva no Brasil –e também o que me levou a posicioná-lo no topo da minha lista dos dez mais enviada à convite do BFI.
O documentário de Vertov foi votado por 100 dos 340 cineastas, críticos e curadores participantes do levantamento. O segundo título mais destacado, “Shoah” (1985), o documentário definitivo sobre o Holocausto realizado por Claude Lanzmann, ficou bem atrás, com 68 votos. Foram seguidos, na lista dos dez mais, por “Sem Sol” (1982), de Chris Marker; “Noite e Neblina” (1955), de Alan Resnais; “A Tênue Linha da Morte” (1989), de Errol Morris; “Crônica de Um Verão”(1960), de Jean Rocuh e Edgar Morin; “Nanook, O Esquimó” (1925), de Robert Flaherty; “Os Catadores e Eu” (2000), de Agnès Varda, e, empatados na nona posição, “Don’t Look Back” (1966), de D. A. Pennebaker, e “Grey Gardens” (1975), de Albert e David Maysles, Ellen Hovde e Muffie Meyer. Excetuando-se o filme-ensaio de Varda, todos os demais podem ser encontrados em DVD no Brasil.
A relação dos “top ten” quando restrita apenas aos 103 cineastas convidados a participar (Walter Salles sendo o único brasileiro) confirma a preferência pelo filme de Vertov e coincide em sete títulos com a votação geral, ainda que em ordem algo diversa (“Sem Sol”, por exemplo, é o segundo). Há contudo três diferenças.
O sexto lugar é dividido por “Caixeiro-Viajante” (1969) de Albert e David Maysles e Charlotte Zwerin, e “Titicut Follies” (1967) de Frederick Wiseman. Além disso, o pioneiro do gênero, Robert Flaherty (1884-1951), teve mais um título incluído, “O Homem de Aran” (1934), empatando na oitava posição com seu próprio “Nanook, O Esquimó” e “Don’t Look Back”. Estas três adições substituíram no “top ten” geral “Crônica de Um Verão”, “Os Catadores e Eu” e “Grey Gardens”.
Lamente-se de pronto a ausência de “Cabra Marcado para Morrer” (1984) de Eduardo Coutinho, ao qual reservei o segundo posto de minha lista, das relações de 50 documentários mais votados da lista geral e dos 35 prediletos dos diretores. Mas a produção documental sul-americana não faz feio com três títulos na relação principal.
O cineasta chileno Patrício Guzmán emplacou nada menos que dois documentários entre os 20 mais lembrados: “Nostalgia da Luz” (2010), empatado na na 12a posição com “Homem Urso” (2005) de Werner Herzog e “Terra Sem Pão” (1932) de Luis Buñuel, e sua trilogia sobre a ascensão e queda de Salvador Allende, “A Batalha do Chile” (1975-1978), no 19o. posto ao lado de “A Arte de Matar” (2012) de Joshua Oppenheimer, Christine Cynn e um cineasta indonésio anônimo, e os curtas-metragens “A Casa É Escura” (1963), única experiência em filme da poeta iraniana Forough Farrokhzad (1935-1967), e “Ouçam a Grã-Bretanha” (1942), de Humphrey Jennings e Stewart McAllister. Por sua vez, também empatado, mas com dez outros títulos, “A Hora dos Fornos” (1968) dos argentinos Fernando Solanas e Octavio Getino ocupa a 47a. posição entre os melhores de todos os tempos.
Mas, sim, Coutinho deveria estar na lista. Apenas diminui um pouco o desapontamento vê-lo em muita boa companhia na lista de outros grandes também excluídos: o americano Emilio de Antonio, os holandeses Johan van der Keuken e Joris Ivens, o dinamarquês Jorgen Leth, o polonês Krzysztof Kieslowski, o húngaro Péter Forgácz, o canadense Pierre Perrault, o cubano Santiago Álvarez, o alemão Wim Wenders –e mesmo o recém falecido Harun Farocki (1944-2014), um dos renovadores do filme-ensaio. Michael Moore? Não, não foi esquecido, porém emplacou somente “Roger & Eu” (1989) no 37o lugar. Teve modestíssimos nove votos.