Dedicada à memória de Eduardo Coutinho (1933-2014), a 19a edição do É Tudo Verdade despede-se neste final de semana com o fecho de sua itinerância em Belo Horizonte. Continua o luto mas este por vezes é amenizado por sinais de vida do diretor de “Cabra Marcado para Morrer” (1984). Foi o que aconteceu no mês passado durante minha breve passagem por Paris, rumo a Moscou, quando em meio a uma visita à biblioteca da Cinemateca Francesa topei com um depoimento pouquíssimo conhecido do jovem Coutinho.
O choque primeiro veio com a foto estampada na página 67 do número triplo (42-43-44) de uma edição em francês da revista Cine Cubano de fins de 1967. A bituca do cigarro entre os dedos da mão esquerda reafirma o lendário vício. Pesados óculos pretos, olhos algo saltados, cabelos e cavanhaque pretos, Coutinho parece flagrado em meio ao longo depoimento transcrito sem assinatura, prática corrente desde 1962 na revista oficial do ICAIC (Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos).
A publicação especial celebrava a primeira edição em Viña del Mar, no Chile, de um festival dedicado ao “nuevo cine latinoamericano”, como passava a ser denominado o movimento cinematográfico impulsionado no continente pela escola documental de Santa Fé liderada por Fernando Birri na Argentina e sobretudo pelo Cinema Novo brasileiro. Tanto é assim que, nos oito fotogramas estampados na capa, dois foram extraídos de “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) de Glauber Rocha, exibindo o casal Manoel/Rosa (Geraldo del Rey/Yoná Magalhães) e Maurício do Valle com o rifle ereto de Antônio das Mortes.
Além deste destaque nacional na capa e em artigos mais genéricos sobre o evento, as quatro páginas dedicadas ao encontro com Coutinho eram seguidas por outras tantas reservadas à transcrição, também em texto corrido sem as perguntas, de um depoimento do documentarista Sérgio Muniz.
Compreenda minha alegria com a descoberta. Não existe referência à entrevista do então cineasta iniciante em nenhum dos três principais livros dedicados a Eduardo Coutinho no país: o belo ensaio publicado pela Zahar por Consuelo Lins em 2004, a coletânea de entrevistas organizada em 2009 por Felipe Bragança para a série Encontros da Azougue e a essencial antologia de 700 páginas editada por Milton Ohata pela Cosac Naify no ano passado. Datam respectivamente de 17 e 9 anos mais tarde (1984 e 1976) os depoimentos mais antigos compilados por Bragança e Ohata.
A importância da entrevista transcende a precocidade do registro. Cine Cubano retrata um Coutinho muito antes da opção pelo documentário, ainda em plena atividade como companheiro de viagem (e de projetos) dos mais importantes diretores do Cinema Novo. Sua única experiência completa como diretor havia sido o episódio “Pacto” da coprodução brasileira-argentino-chilena “ABC do Amor”, realizada no ano anterior.
Coutinho inicia lembrando como seu “velho desejo de fazer cinema” o havia levado a seguir em Paris, entre 1958 e 1960, o prestigiado curso do IDHEC (Institute des Hautes Études Cinematographiques, 1944-88). “O curso pouco representou para meu desenvolvimento”, assegurava. Servia apenas “para dar uma base escolástica aos alunos e formar assistantes de direção”.
Muito mais importante, prosseguia Coutinho, havia sido sua primeira experiência professional, como “gerente de produção”, no filme de episódios “Cinco Vezes Favela” (1963) produzido pelo CPC (Centro Popular de Cultura) da UNE. O bafo repressivo da ditadura militar então vigente marca sua referência à filmagem na sequência de “um filme semidocumentário baseado na vida do líder camponês João Pedro Teixeira”.
Sem citar o título “Cabra Marcado para Morrer”, Coutinho conta que “quando cerca de um terço do filme tinha sido rodado, aconteceu o golpe de Estado de 1o. de abril (de 1964) e o filme foi apreendido pelas autoridades”. Precavido, certamente temeroso quanto à segurança das cenas filmadas que conseguira salvar e esconder no Rio, desconversa: “assim, nada resta deste material”. Uma década e meia depois, seria este a base de seu primeiro clássico.
No correr da entrevista, a concepção de cinema defendida por aquele diretor iniciante guarda notável coerência com o discurso posterior do mestre maduro. “Deve-se fazer um cinema numa linguagem não convencional, e que possa, de uma certa maneira, mais ou menos lenta, criar ou recriar a possibilidade de pensar por todos os povos dos países subdesenvolvidos, principalmente os da América Latina”.
Mais de quatro décadas antes de realizar o devastador filme de montagem “Um Dia na Vida” (2010), Coutinho já metralhava a televisão (“um canal para a domesticação do público”). Tampouco pegava leve com o que considerava “o estado de estagnação” de então das demais artes brasileiras –cinema à parte. Citava ainda como exceções literárias Guimarães Rosa (“fenômeno único”) e entre os poetas em atividade João Cabral de Mello Neto (“o maior”) e Carlos Drummond de Andrade (“na temática urbana o maior do século no Brasil”).
Lamentando a omissão na “luta política e social”de alguns de nossos escritores “de maior valor”, Coutinho encerrava: “Espero que os jovens, quero dizer a nova geração, conseguirão estabelecer uma certa correspondência entre sua vida e sua obra”. O exemplo ele mesmo cuidou de dar, pelo quase meio século seguinte que lhe foi dado viver –e criar.