Se ainda entre nós, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984)
não estaria dando a mínima para a estreia neste domingo da seleção de Messi, De
Maria, Agüero e Higuaín na Copa. Não por querelas nacionais, embora tenho
nascido acidentalmente em Bruxelas e morrido em sua amada Paris. Futebol
simplesmente não era sua praia.
Este desinteresse de Cortázar estendia-se para todos os
esportes competitivos de equipes. “Não gosto de esportes coletivos, o futebol,
o beisebol, o rugby, onde onze jogadores enfrentam outros onze”, confessou em
entrevista a Evelyn Pion Garfield. “Gosto dos individuais, por exemplo o tênis
em “singles” e o boxe, onde um há um homem frente a outro. Não sei, mas não me
interessa quando o espetáculo se dispersa”.
À mesma entrevistadora, o autor de “Fim do Jogo” explicou
ainda as origens biográficas de seu fascínio pelos ringues, que chegou a
frequentar na juventude como pugilista amador. “A mim o boxe me interessou
desde muito pequeno, pois quando tinha nove anos nós (argentinos) tivemos um
grande campeão peso-pesado, (Luís Ángel) Firpo, que fez uma carreira muito
espetacular”.
Firpo (1894-1960) foi o primeiro desafiante latino-americano
ao cinturão mais importante do boxe. A histórica luta dele em 1923 nos EUA
contra o campeão mundial Jack Dempsey (1895-1983), apesar de ter durado apenas
dois rounds, inscreveu-se entre as páginas mais fascinantes do esporte. Firpo
derrubou o americano duas vezes e foi por ele atirado ao chão seis, só no
primeiro assalto. No seguinte, Dempsey precisou derrubá-lo mais duas vezes até
comemorar o nocaute e a manutenção do título.
O próprio Cortázar recorda o combate em sua coletânea “A
Volta ao Dia em 80 Mundos” (Civilização Brasileira). Não há mesmo melhor forma
de mergulhar em seu universo do que indo diretamente a seus escritos, sejam
romances essenciais como “O Jogo da Amarelinha” (1963) ou “Os Prêmios” (1960)
ou livros de contos de leitura não menos compulsiva como “Bestiário” (1951) e
“As Armas Secretas” (1959).
Mas um novo guia à sua intensa vida e à sua obra poliédrica
acaba de pedir lugar nobre na estante com seu lançamento na Argentina para as
celebrações em agosto próximo do centenário de Cortázar. Em “Cortázar de la A a
la Z – Un Álbum Biográfico” (Cortázar de A a Z, - Um Álbum Biográfico,
Alfaguara, 314 páginas), Aurora Bernárdez, que foi sua primeira mulher, e
Carles Álvarez Garriga organizam sob a forma de almanaque alfabético,
suntuosamente ilustrado com projeto gráfico de Sérgio Kern, uma espécie de tudo
o que você queria saber sobre Julio Cortázar – como, por exemplo, seu desprezo
pelo futebol. O melhor é que nosso condutor são as próprias palavras do
escritor, seja em obras ficcionais ou não-ficcionais, cartas e entrevistas.
A riqueza de suas confissões e reflexões, autobiográficas e
literárias, seria suficiente para pautar esta coluna por um mês. Fiquemos então
apenas restritos a nosso foco cinematográfico. E, ao contrário de colegas do
porte de Jorge Luis Borges (1899-1986), Gabriel García Márquez (1928-2014) e
Mario Vargas Llosa, 78, surpreende a resistência de Cortázar à arte do século
20. Seus sentimentos diante do que passa pela tela branca na sala escura são,
assim, inversamente proporcionais aos dedicados ao gênero musical popular seu
contemporâneo, o jazz.
Dois verbetes sintetizam as relações dele com o cinema. No
primeiro, dedicado ao cineasta surrealista espanhol Luis Buñuel (1900-1983),
Cortázar divide com o amigo e também diretor Manuel Antín (pioneiro em
adaptá-lo em filme, com “La Cifra Ímpar” de 1952, extraído de um conto de “As
Armas Secretas”), o impacto sobre ele de “O Anjo Exterminador” (1962). “É tão
raro que o cinema valha para mim como uma experiência realmente profunda, como
isso que te dá a poesia ou o amor e às vezes algum romance ou um quadro”,
reclama o escritor.
No verbete “Filmar”, torna-se muito mais claro o que
Cortazár buscava sem encontrar no cinema, lugar aos quais o público vai,
segundo ele, “para esquecer de si mesmo”. “Se fosse cineasta me dedicaria a
caçar crepúsculos”, revela. “Na realidade um só crepúsculo, mas para chegar ao
crepúsculo definitivo teria que filmar 40 ou 50, pois se fosse cineasta teria
as mesmas exigências que com as palavras, as mulheres ou a geopolítica”.
Um filme feito por Cortázar, quem diria, seria assim um
documentário experimental, algo talvez à moda de alguns títulos do Andy Warhol
cineasta ou, entre os diretores hoje em atividade, de James Benning. Pareceria
mais natural imaginá-lo, depois de adaptado por cineastas do porte de Michelangelo
Antonioni, Claude Chabrol, Luigi Comencini e do brasileiro Roberto Gervitz,
rodando filmes mais próximos dos de Alain Resnais (1922-2014).
Se ainda entre nós, o escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984)
não estaria dando a mínima para a estreia neste domingo da seleção de Messi, De
Maria, Agüero e Higuaín na Copa. Não por querelas nacionais, embora tenho
nascido acidentalmente em Bruxelas e morrido em sua amada Paris. Futebol
simplesmente não era sua praia.
Este desinteresse de Cortázar estendia-se para todos os
esportes competitivos de equipes. “Não gosto de esportes coletivos, o futebol,
o beisebol, o rugby, onde onze jogadores enfrentam outros onze”, confessou em
entrevista a Evelyn Pion Garfield. “Gosto dos individuais, por exemplo o tênis
em “singles” e o boxe, onde um há um homem frente a outro. Não sei, mas não me
interessa quando o espetáculo se dispersa”.
À mesma entrevistadora, o autor de “Fim do Jogo” explicou
ainda as origens biográficas de seu fascínio pelos ringues, que chegou a
frequentar na juventude como pugilista amador. “A mim o boxe me interessou
desde muito pequeno, pois quando tinha nove anos nós (argentinos) tivemos um
grande campeão peso-pesado, (Luís Ángel) Firpo, que fez uma carreira muito
espetacular”.
Firpo (1894-1960) foi o primeiro desafiante latino-americano
ao cinturão mais importante do boxe. A histórica luta dele em 1923 nos EUA
contra o campeão mundial Jack Dempsey (1895-1983), apesar de ter durado apenas
dois rounds, inscreveu-se entre as páginas mais fascinantes do esporte. Firpo
derrubou o americano duas vezes e foi por ele atirado ao chão seis, só no
primeiro assalto. No seguinte, Dempsey precisou derrubá-lo mais duas vezes até
comemorar o nocaute e a manutenção do título.
O próprio Cortázar recorda o combate em sua coletânea “A
Volta ao Dia em 80 Mundos” (Civilização Brasileira). Não há mesmo melhor forma
de mergulhar em seu universo do que indo diretamente a seus escritos, sejam
romances essenciais como “O Jogo da Amarelinha” (1963) ou “Os Prêmios” (1960)
ou livros de contos de leitura não menos compulsiva como “Bestiário” (1951) e
“As Armas Secretas” (1959).
Mas um novo guia à sua intensa vida e à sua obra poliédrica
acaba de pedir lugar nobre na estante com seu lançamento na Argentina para as
celebrações em agosto próximo do centenário de Cortázar. Em “Cortázar de la A a
la Z – Un Álbum Biográfico” (Cortázar de A a Z, - Um Álbum Biográfico,
Alfaguara, 314 páginas), Aurora Bernárdez, que foi sua primeira mulher, e
Carles Álvarez Garriga organizam sob a forma de almanaque alfabético,
suntuosamente ilustrado com projeto gráfico de Sérgio Kern, uma espécie de tudo
o que você queria saber sobre Julio Cortázar – como, por exemplo, seu desprezo
pelo futebol. O melhor é que nosso condutor são as próprias palavras do
escritor, seja em obras ficcionais ou não-ficcionais, cartas e entrevistas.
A riqueza de suas confissões e reflexões, autobiográficas e
literárias, seria suficiente para pautar esta coluna por um mês. Fiquemos então
apenas restritos a nosso foco cinematográfico. E, ao contrário de colegas do
porte de Jorge Luis Borges (1899-1986), Gabriel García Márquez (1928-2014) e
Mario Vargas Llosa, 78, surpreende a resistência de Cortázar à arte do século
20. Seus sentimentos diante do que passa pela tela branca na sala escura são,
assim, inversamente proporcionais aos dedicados ao gênero musical popular seu
contemporâneo, o jazz.
Dois verbetes sintetizam as relações dele com o cinema. No
primeiro, dedicado ao cineasta surrealista espanhol Luis Buñuel (1900-1983),
Cortázar divide com o amigo e também diretor Manuel Antín (pioneiro em
adaptá-lo em filme, com “La Cifra Ímpar” de 1952, extraído de um conto de “As
Armas Secretas”), o impacto sobre ele de “O Anjo Exterminador” (1962). “É tão
raro que o cinema valha para mim como uma experiência realmente profunda, como
isso que te dá a poesia ou o amor e às vezes algum romance ou um quadro”,
reclama o escritor.
No verbete “Filmar”, torna-se muito mais claro o que
Cortazár buscava sem encontrar no cinema, lugar aos quais o público vai,
segundo ele, “para esquecer de si mesmo”. “Se fosse cineasta me dedicaria a
caçar crepúsculos”, revela. “Na realidade um só crepúsculo, mas para chegar ao
crepúsculo definitivo teria que filmar 40 ou 50, pois se fosse cineasta teria
as mesmas exigências que com as palavras, as mulheres ou a geopolítica”.
Um filme feito por Cortázar, quem diria, seria assim um
documentário experimental, algo talvez à moda de alguns títulos do Andy Warhol
cineasta ou, entre os diretores hoje em atividade, de James Benning. Pareceria
mais natural imaginá-lo, depois de adaptado por cineastas do porte de Michelangelo
Antonioni, Claude Chabrol, Luigi Comencini e do brasileiro Roberto Gervitz,
rodando filmes mais próximos dos de Alain Resnais (1922-2014).
Curiosamente, o mestre francês foi buscar inspiração para sua obra mais modernista (O Ano Passado em Marienbad, 1961) em outro escritor argentino, autor de "A Invenção de Morel", Adolfo Bioy Casares (1914-1999). Mas aqui já entramos em outro centenário, a ser comemorado em setembro.
