Leon Hirszman (1937-1987) foi o diretor do Cinema Novo que
alternou sua obra com maior intensidade e harmonia entre documentários e produção
cinematográfica ficcional. Há tempos o É Tudo Verdade esperava uma oportunidade
para homenageá-lo. Esta se apresentou neste ano, com a montagem de “Posfácio
– Imagens do Inconsciente” por Eduardo Escorel à convite do Instituto Moreira
Salles.
Exibido ontem no Rio, nesta sexta é a vez de São Paulo
assistir pela primeira vez ao documentário póstumo e inédito de Hirszman, em
sessão às 20h no CCBB, seguida de debate com Escorel e Carlos Augusto Calil,
então diretor e presidente da Embrafilme quando esta financiou a trilogia que
originou o registro. “Posfácio” traz a público o que Hirszman definiu em 1987
como “a mais linda entrevista de Nise”. Nise é a psiquiatra Nise da Silveira
(1905-1999), discípula de Jung, fundadora do Museu Imagens do Inconsciente.
Ela e Hirszman associaram-se no começo dos anos 1980 para
realizar três documentários, lançados em 1986. “O argumento do filme é dela”,
contava Leon em 1983. “São três casos clínicos. Três histórias de vida”. Logo
antes precisara: “Três artistas. Três internos do Hospital Psiquiátrico Pedro
II, antigo Centro Psiquiátrico Nacional” (hoje, Instituto Municipal Nise da
Silveira, Engenho de Dentro, Rio de Janeiro). Eram eles Adelina Gomes, Carlos
Pertuis e Fernando Diniz.
Leon e Nise se conheceram em 1968, quando ele foi assistir a
uma montagem de “As Bacantes” no Engenho de Dentro. Reencontraram-se no começo
dos anos 1980 e passaram a desenvolver um antigo projeto de colaboração em
cinema. Trabalharam dois anos no roteiro. Rodaram-no a partir de 1983 mas a edição
final dos três episódios só foi terminada três anos mais tarde.
Em abril daquele ano, “a mais linda entrevista”, na verdade
dois depoimentos, foi feita por Hirszman. “Imagens do Inconsciente se encerra
com a premonição da morte de Carlos. Mas eu queria acrescentar um posfácio”,
explicaria Leon. Este posfácio seria a edição destas entrevistas. “É um
depoimento de caráter filosófico, em que ela expõe algumas idéias”, continuava
o cineasta. “Uma maravilha. Alguém já imaginou a Nise comprando Spinoza em Alagoas?”.
O fecho à trilogia tinha dois títulos de trabalho: “O
Egresso” e “A Emoção de Lidar”. Fragilizado logo depois de filmá-lo, Hirszman
não chegaria a editá-lo, morrendo precocemente aos 49 anos em setembro de 1987.
Desde então, o material bruto esteve depositado na Cinemateca Brasileira.
O projeto de lançamento em DVD pelo IMS das cópias
restauradas há dois anos de “Imagens do Inconsciente” catalisou o convite para
Eduardo Escorel enfrentar o desafio de transformá-lo em filme. Nasce, assim,
“Posfácio”. Em texto sobre o processo, Escorel explica que adotou “dois
princípios gerais, aparentemente contraditórios” para editar a entrevista.
Primeiro: “De um lado, fazer uma intervenção mínima no
material bruto (...), tendo por objetivo preservar, na medida do possível, a
ordem e manter separados os dois dias nos quais a filmagem foi realizada (15 e
19 de abril), além de eliminar apenas o que parecesse estritamente necessário.
Dessa maneira, foram preservados na versão final editada cerca de 70% dos 98’
filmados, proporção bem acima do usual”.
Segundo: “(R)ecuperar trechos do depoimento de Nise cujo
áudio foi gravado, mas que não foram filmados, assim como intervenções em voz
off de Leon feitas, em alguns casos, quando a câmera estava filmando, mas, na
maioria das vezes, sem que imagens correspondentes estivessem sendo feitas”.
Escorel acabou por concluir com razão “que esses dois balisamentos da montagem
não são antitéticos, servindo, pelo contrário, ao mesmo propósito: assegurar,
na medida do possível, a integridade do registro e recuperar, dessa maneira,
aspecto singular do encontro entre Nise e Leon – a interação que houve entre
eles naquele distante mês de abril, fadada a ser perdida caso a entrevista
tivesse sido montada nos anos 1980, em seguida à filmagem”.
Escorel optou por, frisando as particularidades que
distinguiram os dois encontros, dividir o filme em duas partes, batizando-as
com os subtítulos “A Emoção de Lidar” e “O Egresso”, emprestados das
denominações originais.
“A Emoção de Lidar” enfoca o “fascínio de Nise pelo que
acontecia na ‘cuca do esquizofrênico, debaixo daquele aspecto miserável de
atoleimado, de demenciado, de alienado’”, explica Escorel. Já “O Egresso”
dedica-se à “‘tragédia do egresso’, definido na própria filmagem por Nise como sendo
o doente internado que tem alta, deixa o hospital e não encontra ‘espaço na
família e na sociedade’”.
“Posfácio” traz finalmente à luz o fascínio de Hirszman por
Nise, partilhado por tantos que a conheceram. A riqueza de sua trajetória está
sendo reconstituída por uma cinebiografia ficcional, atualmente em fase de
edição, dirigida por Roberto Berliner, com Glória Pires no papel da dra. Nise.
A psiquiatra alagoana não deixaria de registrar por escrito,
sob o impacto da perda do amigo e parceiro, que a admiração era recíproca. Leon
Hirszman, na definição de Nise: “artista, cineasta de qualidade excepcional,
homem de formação científica no campo das ciências exatas”. É um raríssimo
privilégio que o reencontro deles, por tanto adiado, aconteça nestes dias nas
telas de nosso festival.
