Amir Labaki
É sobretudo de tributos e de revelações a fábrica do É Tudo Verdade 2014 que hoje começa para convidados no Rio e para o público em São Paulo. A homenagem a Eduardo Coutinho é ao mesmo tempo uma modesta celebração de um dos esteios essenciais de nossa história e um símbolo do reconhecimento e gratidão a outros marcantes companheiros de viagem que nos deixaram desde nosso último festival: Aloysio Raulino, Peter Wintonick e, há apenas uma semana, o cineasta e montador Ricardo Miranda.
Há um ano cá estavam Peter atirando pipocas ao alto em nossa abertura paulistana, Coutinho com sua inseparável bolsa a tiracolo honrando-nos como sempre na estreia carioca, Aloysio prestigiando com o recato habitual as sessões dos colegas, Ricardo flanando entre projeções com a característica camaradagem. Todos eles foram construtores do É Tudo Verdade, com suas obras marcantes, a sabedoria partilhada em júris, os conselhos generosos, a presença constante. A dolorosa soma dos vazios de seus desaparecimentos apresenta um gigantesco desafio a enfrentar.
As saudades de cada um deles me fez lembrar uma antiga leitura do filósofo americano Ralph Waldo Emerson (1803-1882), que assim escreve na introdução a “Homens Representantivos”: “O mundo é sustentado pela veracidade dos homens bons: são eles que tornam a terra salutar. Aqueles que com eles viveram acharam a vida alegre e nutritiva. A vida só é doce e tolerável se acreditarmos numa sociedade assim e, seja na realidade ou idealmente, logramos viver com esses superiores. (...) Seus nomes são forjados nos verbos da língua, suas obras e efígies habitam nossas casas e cada circunstância do dia faz-nos lembrar de uma anedota a seu respeito”.
“Quando a natureza elimina um grande homem”, prossegue mais adiante Emerson, “as pessoas exploram o horizonte em busca de um sucessor, mas nenhum chega ou chegará. Sua classe se extingue com ele”.
Mas, como ele mesmo sustenta, “a rotação é a lei da natureza”. Ainda não aplacado o luto, captura-nos os sentidos a chegada de uma nova geração, catalisada sem dúvida, diretamente em inúmeros casos, aqui como no exterior, por Coutinho e Peter, Aloysio e Ricardo.
Nunca antes as competições de longas e médias-metragens do É Tudo Verdade foram dominadas tão amplamente por realizadores que delas nunca antes participaram. Apenas um dos sete concorrentes brasileiros e um dos doze disputantes internacionais já haviam antes competido. Quando uma nova geração com tamanha força germina, a terra por certo tem sido bem semeada. É o “sublime” que via Emerson na “produção de novos artistas”.
É também sob o signo do batismo que as retrospectivas do festival celebram, em ambos os casos pela primeira vez, uma documentarista brasileira e um cineasta asiático. Cada qual a sua maneira, Helena Solberg e Shohei Imamura são conhecidos desconhecidos.
Premiada maciçamente nas duas últimas décadas por sua filmografia no país, por títulos como o documentário “Carmen Miranda – Bananas is My Business” e o ficcional “Vida de Menina”, Solberg desenvolveu parte expressiva de sua obra documental nos cerca de trinta anos que viveu nos EUA, com um vigor que pioneiramente uma mostra especial e um livro de Mariana Tavares apresentam agora ao Brasil.
Imamura, por sua vez, entre sua revelação como um dos mais perturbadores cineastas da “nouvelle vague” japonesa (“A Mulher Inseto”, “Os Pornógrafos”) e a consagração mundial com duas Palmas de Ouro em Cannes (“A Balada de Narayama” e “A Enguia”), abandonou o cinema ficcional para se dedicar por uma década a ousados documentários sobre tabus da sociedade nipônica (“Um Homem Desaparece”, “A Fabricação de Uma Prostituta”).
Ainda pela primeira vez, duas das assistentes de nossa equipe de produção, Louise e Sofia, nasceram depois da primeira edição do festival. No brilho do olhar delas, a um só tempo refletindo e realimentando a luz de tantas iniciações, ilumina-se o presente e acende-se o futuro do É Tudo Verdade. “Os homem marcham”, já dizia Emerson, “como profecias da nova era”.
